O menino é pai do homem
Ivane Laurete Perotti
Subiu copas. Carregava Assis, o Machado. Alma em tijolos de letras. Cubas de acesso. Memórias. Arquivo digital. Tempo em cortinas. Emplastro de sabiá. Doente. Adesivo no braço. Esquerdo.
Reconhecia-se no personagem. Póstumos, ambos. Ele e o outro. Sintomas da brevidade na lápide social. Andava um. Versava outro.
Beirava idade máxima. Bastasse dizer como ele, o Machado, um pouco, tão somente. Salvar-se-ia da selvagem pena. Sabia ler. Aprendia sentir.
Viu correr o menino. Frestas da gaiola ensaiada. Plantio desadubado na abundância da filiação. Era o que pensava. Corria o menino. Descalço da vida. Imberbe. De fios e sentidos. O crucial “agora” sacolejando pernas e braços. Nunc. Sobre os passos, a sombra do pai ausente. Presente. Presente-ausente. Essa tal dubiedade que levou Sigmund Freud a revelar sobras de família. Quando sobram. Ou resistem em desassistida negação. Sobras de páginas inteiras. Fragmentos de episódios transformados em obra. História. Pessoal. Coletiva. Era no que acreditava.
Desejou frear o menino. Desfalcados degraus aguardavam-no. Sorrateiros. Inconscientes. Plenos de linguagem. Não falada. Des/anunciada. Linguagem de consequências jamais aprendidas. Não! Parar o menino equivaleria a lançar mão de uma vírgula. Um ponto. Aquela frase não lhe pertencia. Que avançasse o menino. Analfabeto. Alegre. Talvez, feliz. A ignorância tem base processual: para alguns, investimento. Para outros, opção. Ali, na cena, parecia-lhe necessária.
Viu-se. Antigo, já. Madurado, quem sabe. Encontrara outros degraus. Desfalcados. Incompletos. Surrupiados. Era o inconsciente transcrevendo sintomas. Sintaxe inaudível. Imagética. Impiedoso inconsciente. Sempre distante do lugar de origem. Presente às frestas e fagulhas. Queimando o agora. Retardando o sempre.
A linguagem comia-lhe a alma, fartando-se em obsequiosa imprecisão. Hálito denso. Significados em “tido” e “ido” deslocavam-se em folgada carreira. Iam e vinham, tal qual, e diferentes. Transfigurados: ditos. Instalava-se, assim, o menino: pai do homem. Homem do pai? A massa fluida e inconsistente do inconsciente procura caminho. Sem endereço, provoca. Instaura. Permeia. Perfura a débil teia da vida.
Desceu copas. Cubas adiantara-lhe emplastro. Um sabiá beijou a janela. Aberta. Uma alma voou por ela.
Para ler mais…
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.