Ainda Jogos Olímpicos: variações
Alexandre Fernandez Vaz
Depois de duas intensas semanas, os Jogos Olímpicos chegaram ao fim, permitindo que amantes fiéis ou temporários dos esportes baixem um pouco a adrenalina que, ao que parece, andou alta no sangue dos brasileiros. Um filósofo já disse uma vez, ironicamente, que a história se repete, sendo sua primeira realização em forma de tragédia e a segunda como farsa. Pois bem, a competição aconteceu nas pistas e quadras, nos ginásios e picadeiros hípicos, até nos mares distantes do Tahiti, mas isso é só parte do negócio ou até mesmo um pretexto para ele. De fato, a batalha é por meio das imagens, assim como do ruído que elas causam, amplificado e ouvido nas redes sociais.
Um exemplo? Na prova em que a fora-de-série Rebeca Andrade conquistou a medalha de ouro, o solo na ginástica artística, Ana Barbosu, da Romênia, galgara o terceiro posto, de onde foi empurrada por decisão dos árbitros ao acatarem recurso da equipe dos Estados Unidos da América (EUA) questionando a nota mais baixa atribuída à Jordan Chiles. Ocorre que outra romena, Sabrina Maneca-Voinea, ficou em quinto lugar, penalizada por ter pisado, em um movimento, fora da área regulamentar. As imagens disponíveis mostram que o toque no chão não aconteceu. Ou pelo menos é o que supomos ao assisti-las. O imbróglio ganhou ares de conflito diplomático, com o primeiro-ministro do país europeu, de forte tradição na modalidade (Nadia Comăneci foi a primeira a receber nota 10,0 na história, em Montreal 1976), ameaçando ausentar-se da cerimônia de encerramento do evento. As bravas e excepcionais atletas competiram, Rebeca venceu, mas as coisas não terminaram, não terminam.
A batalha de imagens e protestos seguiu, com desfecho favorável não para Maneca-Voinea, senão para Barbosu, reconduzida ao bronze, uma vez que os EUA teriam feito seu protesto fora do prazo regulamentar. As imagens que dariam pontos extras a Chiles não foram apresentadas com a rapidez necessária, portanto. Esta foi a decisão da Corte Internacional do Esporte que, no entanto, facultou à Federação Internacional de Ginástica o destino da medalha. Ou seja, a coisa pode ir longe. Fica na nossa memória (a da internet, em que nada se perde, a não ser nossa própria capacidade de recordar) a icônica foto do pódio, em que duas estadunidenses, uma delas a campeoníssima Simone Biles, reverenciam a medalhista de ouro brasileira.
O retrato das três foi objeto de repulsa por parte de Marlon Humphrey, jogador NFL, a liga profissional do football jogado nos EUA, aquele em que os atletas portam armaduras e no qual a bola (que é oval) é tocada mais com as mãos que com os pés. Ele classificou o quadro protagonizado por suas compatriotas que homenagearam a vencedora como “nojento”. Tem algo de curioso em alguns esportes majoritariamente praticados naquela nação, ou nos quais os atletas que lá atuam têm grande destaque, como o próprio football, o beisebol e o basquete. Nos três parece não haver dúvidas, a considerar as respectivas autoimagens, de que o campeão não é apenas o melhor do país, mas do mundo. Foi para o que chamou a atenção o velocista Noah Lyles, compatriota do footballer e das ginastas e medalhista de ouro nos 100 metros rasos, que criticou, como já fizera no ano passado, o fato de que na liga de basquete (a famosa NBA) se entenda que a conquista de um torneio disputado apenas no próprio país (ao qual se soma uma franquia canadense) corresponda a um título mundial.
O mesmo Lyles, aliás, chegou ao bronze nos 200 metros em Paris. Exausto, precisou de atendimento ainda na pista, algo incomum para ele e para a prova, que é de curta duração. Soube-se depois que estava com covid-19. Na usina bioquímica que é o corpo de um atleta do nível desse excepcional velocista, algo deve ter complicado muito o funcionamento de músculos, sangue, tendões e nervos que, se não são de aço, devem funcionar como se fossem. A incorporação de um vírus pode colocar tudo a perder no precário equilíbrio corporal de quem está no limite, ou pronto para ultrapassá-lo. Um esforço que, paradoxalmente, é contra o próprio corpo.
Esforço que será mostrado para um número cada vez maior de pessoas nas redes sociais. A vitoriosa judoca Beatriz Souza passou de 15 mil para um milhão e meio de seguidores nas horas que sucederam a conquista da medalha de ouro, enquanto Flávia Saraiva, do time que alcançou o bronze na ginástica artística, chegou aos cinco milhões em poucos dias. Theodor W. Adorno escreveu que um dos imperativos da indústria cultural é falar de si mesma. Pois bem, as transmissões irreverentes da Cazé TV se esmeraram em convocar os espectadores a seguir os atletas brasileiros nas redes sociais, além, claro, do próprio canal de Casimiro Miguel. Ou seja, seguidores devem multiplicar os seguidores em suas contas, alinhando-se a mais e mais celebridades (como também às subcelebridades), condição a que os atletas são alçados. Não basta vencer, mas impressionar e fazer uns “publis”, ou mesmo se tornar um influencer, essa estranha profissão dos estranhos tempos em que vivemos. Uma repórter sugeriu que Alison dos Santos poderia atuar como tal, considerados seu carisma e capacidade comunicativa, qualidades que ele de fato apresenta. Isso aconteceu logo após as semifinais, em que o brasileiro teve dificuldades de classificação. Na final, o que contou foi o talento e o trabalho desse atleta, que chegou ao terceiro lugar e garantiu sua segunda medalha olímpica em uma prova cuja evolução foi brutal nos últimos anos.
Alison participa do Programa de Atletas de Alto Rendimento (PAAR), em que as Forças Armadas engajam competidores para, por alguns anos, apoia-los com salários e outros benefícios. Flávia também compõe os quadros castrenses para o mesmo fim, assim como quase um terço do contingente brasileiro que foi a Paris. Criado em 2008 pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (algo que poucas vezes é mencionado), o PAAR é mostra do quanto o Estado financia o esporte e, apesar da sanha privatista do governo de Bolsonaro, ele não foi extinto. Jair não mexeria em algo que traz prestígio para a caserna. Pensando bem, eis algo que não é ruim. Se o esporte tem afinidade com a guerra, melhor que haja apoio à forma sublimada que ela encontra nas contendas atléticas. Seria bom que as fantasias militares se fixassem aí e deixassem, por exemplo, o apetite pela política. Sem armas nas discussões da polis, sem armas nas quadras e pistas. Um alívio para o mundo.