Versal

Ivane Laurete Perotti

Brasas de empecilhos chispavam abaixo da planta calosa. Pés descalços. Forjados na via dos desassistidos. Notório era mais um invisível. Desnudo de vaidades, habitava no além do corpo. Ausências esculpiam-lhe a tez. Na desrazão que se autodefine, Notório tratava a vida na bonança de versos. Métricos. Imediatos. Livres. Soltos. Presos apenas às gotas de secular saudade. Do quê? De que, ninguém saberia. Sabia-se ouvir a voz versal ladrilhando a calçada em brasas.

o dia fez cortina
de fumaça e lamaçal
o homem de fortuna
perdeu  o seu quintal

Não era a voz. Era a vez. O “como” dizia. 

venho da terra caída
mãos de ferro e dó
pólvora mata o homem
fome mata em pó

Como se felicidade fosse erro:

viveu feliz um dia
de verdade nunca visto
nem o dia, nem a felicidade
viver é saudade fria

Contava:

acreditei naquele fajuto
tomado pela mentira
verdade virou acidente
hoje, a vida não dura
vira, vira, vira

Se perguntado:

_ Você gosta de poesia? Quem lhe ensinou? Sabe ler?  Notório respondia:

só sei o sabido incerto
da vida que eu não queria
você se acha sábio
não entende a ironia

Na última vez em que parei para ouvi-lo, revi Quintana, em sua complexa simplicidade: “ os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde…”. Não era louco. Era poeta.

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