Conversas com Violeta: nossos protagonismos revisitados
Alexandra Lima da Silva
“Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelos menos de onde vens” (Provérbio africano).
Nasci no ano de 1980, numa região chamada de “Baixada Fluminense” (periferia metropolitana do estado do Rio de Janeiro. A Baixada é uma região com ampla maioria de população negra).
Cresci vendo “Xou da Xuxa”, um programa de televisão infantil muito popular no Brasil no período de 1986 a 1992. Xuxa, uma jovem mulher loira de ascendência alemã, se tornou uma celebridade no Brasil. Fiz parte da geração de crianças que cresceu assistindo a desenhos protagonizados por personagens brancos. O ano de 1986 também marcou o fim do programa infantil Sítio do Pica pau Amarelo, inspirado nos livros de Monteiro Lobato, autor com forte viés racista. Nas obras de Monteiro Lobato, pessoas negras eram retratadas de maneira estereotipada e preconceituosa e gerações de brasileiros aprenderam a gostar de ler com esses livros infantis…
Apesar do programa da Xuxa, fui uma criança leitora. Nos livros da minha infância havia príncipes e princesas, todos loiros e loiras de olhos azuis. Mas nem todos tinham os olhos azuis como os da apresentadora Xuxa: havia alguns que tinham os olhos verdes, como os da apresentadora Angélica…
Quando eu desenhava, as personagens eram brancas. As minhas bonecas também eram majoritariamente brancas. Cresci obcecada pela boneca Barbie, a qual nunca tive…
Tive belas bonecas de pano que minha mãe fazia para mim. Essas tinham cabelos escuros e cacheados. E também tinham meu tom de pele. Eu gostava muito daquelas bonecas…
Quando fui alfabetizada, a professora utilizou a música “Abecedário da Xuxa”.
Lembro da letra até hoje:
“A de amor, B de baixinho, C de coração, D de docinho, E de escola…”.
E sim, eu cantava na escola, sempre a primeira da fila, e ai de quem tentasse me tirar o protagonismo. Eu não ligava muito se tinha gente rindo. E sempre tinha gente rindo, pois eu não era branca, nem loira…
A propósito, não havia muitas meninas loiras de olhos azuis na escolinha pública de apenas duas salas onde me alfabetizei, na zona rural de Itaboraí, num lugar chamado Perobas.
E a relação da professora branca com a Xuxa também não terminou no abecedário. Criativa que só, ela ousou criar uma apresentação musical com a música “Arco-íris” na festinha de fim de ano. E lá foram as meninas, todas vestidas de saia de papel crepom para fazer a dancinha.
Nós, crianças pobres e vivendo numa zona rural, não tínhamos dinheiro para comprar a famosa bota e o chapéu das Paquitas. Mas ainda assim, nos apresentavam a beleza como sendo aquilo que vinha da branquitude da Xuxa, utilizada como recurso pedagógico para educar crianças negras e pobres, numa zona rural.
Eu era muito curiosa e desinibida, gostava de tudo o que era oferecido pela escola e pelas professoras, todas brancas.
Com o passar do tempo, e com outras leituras, aprendi que não nasci com o privilégio da branquitude. E que as pessoas esperavam que eu me tornasse uma “mulata Globeleza”, e não uma intelectual.
Passei a entender, à medida que fui reconhecendo o racismo cotidiano, que meninas como eu deveriam se apoderar das próprias narrativas e deveriam se recusar a aceitar passivamente um lugar de “objetificação”.
Encontrei nos livros meu caminho para casa…
Eu gostava muito de livros. Foram o meu refúgio. Mas também o protagonismo, na maioria dos livros que eu li na infância e na adolescência, era de pessoas brancas. Isso passou a me incomodar bastante quando eu cheguei ao Ensino Médio, e foi lá que eu tive meu primeiro contato com Clara dos Anjos, de Lima Barreto, com as personagens de Machado de Assis e com Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus.
Eu tinha uns 16 anos quando eu li Carolina pela primeira vez. Quarto de Despejo foi um dos livros que eu devorei naquele ano de 1997. Eu gostava de ler sobre temas sensíveis. Eu gostava de tentar entender por que o mundo era tão injusto, desigual e cruel.
E Carolina sobrevivia das sobras.
Catava papelão.
E escrevia.
Eu também escrevia.
Naquele tempo, eu tinha uma agenda velha que eu fazia de diário. Então, de certa maneira, eu conseguia entender um pouco a importância da escrita na vida daquela mulher negra, completamente negligenciada pelo Estado. Mas eu não conseguia entender por que algumas vidas não importavam.
Por que algumas pessoas não tinham direito à comida?
Por que algumas pessoas não tinham direito a uma casa de alvenaria?
Por que algumas pessoas eram invisíveis?
A voz de Carolina não saía mais da minha cabeça. Carolina passou a residir em mim:
“Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta contra as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista” (JESUS, 2014, p. 60).
Carolina me marcou.
Ela também me inspirou a escrever….
Por não ter tido muitos livros protagonizados por personagens negros na minha infância, tornei-me uma pessoa adulta que consome literatura infantil. E passei a colecionar livros escritos por autoras e autores negros como bell hooks, Toni Morrison, Maya Angelou, Lázaro Ramos, Emicida…
Um dos meus livros favoritos da minha coleção é o Pequeno Príncipe Preto, escrito por Rodrigo França, com ilustrações de Juliana Barbosa Pereira e publicado pela editora Nova Fronteira em 2020. A obra é um desdobramento da peça de mesmo nome, na qual o autor se inspirou nas histórias da própria família e nos ensinamentos de Filosofia Yorubá. O livro também fala da importância do amor-próprio a partir da história de um menino preto que morava num planeta minúsculo, habitado apenas por ele e por uma bela árvore Baobá.
Tenho ensinado a transgredir por meio da leitura e da escrita de literatura infantojuvenil, pois a educação antirracista é dever de todas as pessoas: professoras, familiares, escritoras, cineastas… É preciso reconhecer que num país como o Brasil, em que a maior parte da população é negra, contar nos dedos a existência de personagens negros nas novelas, no cinema, no teatro e na literatura é uma aberração.
Precisamos acompanhar a caminhada de Nelson Mandela, para o qual “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar (Mandela, 1995).
Para além da representatividade, protagonismo importa.
É chegado o tempo de romper com o silêncio. Um país que silencia e nega a existência da maior parte da sua população ainda tem muito o que aprender e mudar.
Para além de representatividade, é importante também que as personagens negras dos livros infantis sejam protagonistas e que sejam representadas com dignidade, para que a autoestima das crianças negras seja construída de modo que elas aprendam que o amor-próprio vem em primeiro lugar.