História e eugenia racial em Canaã (1902), de Graça Aranha
Laerte de Souza Silva
Joachin de Melo Azevedo Neto
Para o evolucionismo social, em voga entre as elites do ocidente desde o século XIX, uma suposta raça humana superior deveria atender os critérios de maior riqueza, poder militar e melhor tecnologia. Por outro lado, os pobres eram exemplo de uma raça inferior, degenerada e atrasada. Por conta dessa visão ideológica dominante que condenou a miscigenação entre diferentes etnias, o indivíduo mestiço foi considerado portador de heranças genéticas negativas. A afirmação de preconceitos raciais eurocêntricos travestidos de verdades científicas foi bastante útil para justificar e legitimar a pilhagem imperialista dos europeus no continente africano, o autoritarismo estadunidense na América e a exploração dos ricos sobre os pobres.
A influente família paulista Padro foi a responsável por organizar a vinda e o acolhimento de Graça Aranha da Europa, em 1915, para a conferência promovida pela Sociedade de Cultura Artística da cidade de São Paulo. Durante a conferência, Aranha discursou sobre “A mocidade heróica de Joaquim Nabuco”, tema provavelmente escolhido por ele mesmo. O retorno definitivo de Graça Aranha ao Brasil foi em 1921, um ano antes da Semana de Arte Moderna de 1922. Retornou cheio de ideias vanguardistas que circulavam pela Europa. Ao visitar a primeira exposição de quadros e desenhos de Emiliano Di Cavalcanti, Graça Aranha se aproximou de Mário e Oswald de Andrade. Aranha foi um grande apoiador desses jovens artistas modernistas e apreciava estar entre eles. Foi o elo entre o modernismo paulista com a Academia Brasileira de Letras e essa postura lhe possibilitou a participação para proferir o discurso de abertura da Semana de 1922. O discurso foi intitulado “A Emoção Estética na Arte Moderna”, baseado na filosofia de sua obra A estética da vida (1921).
Membro da Academia Brasileira de Letras, conhecido por suas funções diplomáticas na Europa e aclamado por alguns pela inovadora obra literária Canaã, publicada originalmente em 1902, Graça Aranha foi um escritor que dividiu opiniões. Canaã não é um romance baseado no convívio e nas relações de troca entre os personagens de diferentes fenótipos étnicos. Canaã é uma obra que trata da imigração alemã no Sul do país e representa discursos dos vencidos e vencedores através dos diálogos e trajetórias dos personagens Milkau e Lentz. Em outras palavras, é a visão do Brasil através dos credos racistas do imigrante europeu.
O primeiro personagem que o narrador apresenta é o imigrante alemão Milkau, cavalgando um cansado cavalo alugado na cidade de Queimado em direção a Pôrto do Cachoeiro. Deslumbrado com a doce e harmoniosa redondeza, adentra uma gloriosa floresta “vestidas de uma relva curva que suave lhes desce pelos flancos, com túnica fulva, envolvendo-as numa carícia quente e infinita” (Aranha, 1969, p. 05). Lá não pairavam as contradições sociais de uma terra supostamente desprestigiada pela miscigenação. Nesse trajeto, Milkau pensou acerca da condição humana do guia do translado, filho do alugador de animais do Queimado, enquanto a cria de uma raça “que se ia extinguindo na dor surda e inconsciente das espécies que nunca chegam a uma florescência superior, a uma plena expansão da individualidade” (Aranha, 1969, p. 06-07).
Essa mesma natureza é vista pelos olhos de Lentz como o real exemplo da luta evolucionista e a sobrevivência dos mais fortes. E, também observando a floresta, Lentz deduz que a plenitude florescente das grandes árvores ou sua história de vida, da semente até a totalidade de sua beleza adulta, é uma história de combate e morte de muitas outras árvores mais fracas que estavam em seu entorno. A arianização da raça brasileira tornou-se um projeto do governo com campanhas para convencer a comunidade internacional. Milkau, ao completar uma parcela de seu trajeto em direção ao Rio Doce, balbucia a respeito do que entendia ser o trabalho salvífico que somente a sua raça europeia poderia realizar: “É provável que o nosso destino seja transformar de baixo acima este país, de substituir por outra civilização toda a cultura, a religião e as tradições de um povo” (Aranha, 1969, p. 36).
Essa afirmação, acima de tudo, confirma de modo brutal a força das teorias raciais eugenistas mesmo em países multiétnicos. E toda essa brutalidade colonizadora é incisiva, principalmente, contra povos negros e indígenas. Povos esses que foram dominados fisicamente, religiosamente, socialmente e culturalmente com a finalidade de legitimação do imperialismo europeu e norte-americano. Desse modo, um cânone tido como modernista, como Graça Aranha, foi extremamente conservador, desrespeitoso e agressivo contra o passado de milhões de brasileiros que tiveram de testemunhar barbáries racistas que, além de ser praticadas no cotidiano, eram escritas com verniz de pretensas verdades científicas.