A juventude e suas batalhas (A causa é legítima)
Alexandre Fernandez Vaz
Um tanto por nossos fracassos, outro por nossas frustrações, costumamos idealizar a juventude. Parece-nos que é ela que vai fazer tudo aquilo que nos foi impossível e, quando os jovens nos decepcionam, fica a impressão de que uma vez mais teremos uma geração, como a nossa, perdida. Hannah Arendt escreveu que é dos adultos a responsabilidade de proteger o mundo da destruição, preocupar-se com o futuro, para que os novos que nele chegam – crianças e jovens – possam bem viver. Em geral fazemos o contrário, passando a incumbência para os que nos sucedem, transferindo-lhes o encargo do qual não damos conta.
Historicamente, a juventude passa de estágio marcado pela pura falta de maturidade para o de qualidades próprias, como certo inconformismo que na dose “certa” (que significa o quanto dele suportamos) é visto como positivo. O cinema e outros produtos do audiovisual documentam esse processo, ao mesmo tempo em que educam as sensibilidades para o que é ou não “correto” no comportamento e nas expectativas para quem não é criança, tampouco adulto, sendo, no entanto, um pouco de cada um. Como destacou o psicanalista Contardo Caligaris, ser jovem é lidar com as demandas por autonomia e rebeldia de um lado, e pelas de adequação e obediência de outro. Difícil se equilibrar nessa corda bamba.
Mas, não é só isso, as juventudes são múltiplas. Ser uma jovem da periferia de uma grande capital é diferente de habitar, sendo moça da mesma idade, uma cidade alemã onde se pode frequentar uma escola pública de excelência. Se isso não determina o presente e o futuro, é certo que o condiciona. Mas há muitos outros atravessamentos, como gênero, orientação sexual, etnia, origem migratória, religiosidade etc. Então não há um ser universal da juventude, mas uma experiência social concreta ao vivê-la.
Já houve, no entanto, um seriado de relativo sucesso na televisão, desdobramento de uma das costelas do filme Cidade de Deus (que, por sua vez, foi baseado no romance de Paulo Lins, de mesmo nome), que defendeu que as diferenças entre jovens de distintas camadas sociais não seriam grandes, já que essencialmente eles teriam os mesmos problemas existenciais. O menino que vive em um edifício com a mãe que não lhe permite sair à rua porque teme a violência à qual ele estaria submetido não diferiria tanto daquele que caminha pelas ruas sem que a mãe possa controlá-lo, visto que passa a semana toda em casa de família na zona nobre da cidade, trabalhando como empregada doméstica. Segundo o argumento do filme, um invejaria o outro, fosse pela presença da mãe junto com um, fosse pela “liberdade” do outro. Chega a ser constrangedora tal comparação.
Uma sociedade partida, por outro lado, é o que emerge no interessante documentário A causa é legítima: a Batalha da Alfândega é o direito à cidade, de Ricardo Pesseti. É na região central de Florianópolis, no Largo da Alfândega, que acontecem em noites de quinta-feira as batalhas de rimas entre jovens MCs (principalmente rapazes, mas também notórias moças). A cidade há anos não tem mais seu porto, e então é no largo em torno da antiga aduana – um lugar público, como muitos depoimentos no filme sublinham – que se dão os encontros. É lá que jovens dos diversos cantos da Ilha de Santa Catarina, da parte continental da cidade e também de municípios vizinhos podem, como diz um deles, “Mostrar pra eles a realidade que não é essa bozolândia toda vida, não”.
Como costuma acontecer no Brasil, os jovens não sabem muito bem quem são “eles”, tanto porque “eles” são legião, quanto porque “eles” não fazem questão de mostrar todas as suas caras. Os rapazes e moças que estão para os combates ou para os assistirem não estão imunes a práticas racistas, a perseguições policiais, a preconceitos de classe. Administrações públicas, forças policiais, “cidadãos de bem” que passam ao largo do Largo da Alfândega, assustados, temerosos, raivosos, são algumas das formas que os “eles” assumem. O movimento do rap não pretende abolir o Estado, tampouco atacar os poderes constituídos, quando eles atuam conforme a democracia. Ao contrário, clama por políticas públicas e não quer manter a cisão de classes, mas abarcar, em plano mais alto e politicamente avançado, o coletivo da sociedade. Demanda, portanto, por democratizar a cidade, assumi-la como espaço público, de todas as pessoas.
“Quem tá ali na batalha é contra esse sistema”, diz uma MC, enquanto um outro diz que o rap muda uma vida, enquanto a batalha transforma muitas. São convincentes as análises que vemos serem feitas por seus frequentadores, oriundas das experiências concretas trazidas ao plano da reflexão. As batalhas de sangue são os confrontos entre dois, com rounds de 40 segundos sobre temas colocados como desafio. Para que as rimas aconteçam é preciso ter talento com as palavras e, para tanto, o repertório e o vocabulário não podem ser curtos. Ou seja, estamos falando de gente preparada e criativa. Não seria ruim se essas mesmas pessoas também considerassem o que acontece nas disputas eleitorais, conhecessem melhor o funcionamento do Estado e trouxessem sua força, por dentro ou não do movimento, para outros âmbitos políticos. Teríamos todos a ganhar com isso.