Educar a partir dos valores afro-civilizatórios: um legado de Azoilda Loretto para a Educação Infantil

Thais Ferreira Dutra

Minha construção enquanto professora se faz a partir da minha relação com o fazer pedagógico de outras mulheres negras. Minha primeira referência de professora engajada com a mudança radical da sociedade foi minha mãe, e com ela aprendi a ler o mundo pelo prisma social e racial. Ainda pequena, no espaço que denominavam “pré-escola”, me compreendi negra. Eu ainda não tinha 5 anos completos quando, nesse mesmo espaço, sofri racismo dos meus próprios pares.

O compromisso com uma educação baseada no que Azoilda conceituou de valores afro-civilizatórios surge, para mim, como uma sistematização da minha prática pedagógica durante os anos de formação acadêmica. Os anos em que cursei a Universidade se tornaram um período de dedicação ao estudo sobre o legado de Azoilda e da contribuição de tantas outras escritoras negras para a educação básica. Foram elas que me ensinaram a importância da educação para a população negra.

A educação para o povo negro sempre foi essencial para que pudessem se ver libertos. Como afirma bell hooks (2017), “aprendemos desde cedo que a nossa devoção ao estudo, à vida do intelecto, era um ato contra hegemônico” (p. 10). No entanto, no contexto educativo brasileiro, que é marcado pela invisibilização das culturas e histórias africanas e afro-brasileiras, as escolas acabaram se tornando um espaço de fragmentação da identidade de pessoas negras.

As desigualdades raciais presentes na educação vêm, aos poucos, sendo modificadas a partir da implementação de políticas governamentais que impactam tanto o âmbito acadêmico quanto a educação básica.  Por outro lado, o Movimento Negro denuncia de diversas formas a cultura do silenciamento, lutando por políticas que asseguram o debate das questões raciais em diferentes contextos. 

Nesse sentido, torna-se rico dialogar com o saber de Azoilda, que nos propõe potencializar as práticas cotidianas presentes na educação infantil a partir de uma perspectiva afro-civilizatória. A autora sinaliza sete valores caros à essa etapa da educação, sendo eles: energia vital, oralidade, circularidade, corporeidade, musicalidade, ludicidade e cooperatividade.

O princípio da energia vital (Axé) nos propõe olhar a infância como um território vivo e sagrado. Encarar a criança enquanto ser que constrói ativamente a cultura é reconhecê-la como parte essencial da vida coletiva. Práticas que visem o fortalecimento e a potencialização da autoestima da criança contribuem para trabalhar sua energia vital. 

Através da oralidade, reconhecemos o movimento da fala e da escuta como ações libertadoras. Escutar a criança de forma ativa e propor momentos de partilha em que ela possa se expressar através da narrativa oral colabora com o desenvolvimento da sua identidade. Um dos espaços em que a oralidade pode ser trabalhada liga-se ao valor da circularidade. A roda é um espaço de grande importância para o povo negro e, dentro do contexto da Educação Infantil, podemos colocá-la como base de nossa prática pedagógica, propondo momentos de trocas, brincadeiras, jogos e inserção de temas importantes para as crianças. Na roda todos se veem, se reconhecem, falam e escutam. 

Dentro da perspectiva afro-civilizatória, o corpo tem um lugar central e sagrado de afirmação da vida. Desenvolver a noção de corporeidade torna-se essencial para reconhecer-se como indivíduo. Valorizar as potencialidades do corpo infantil de forma integral, oferecendo ferramentas para que as crianças se desenvolvam plenamente, cuidando de si e reconhecendo seus sentimentos é também parte de uma educação antirracista. 

Os princípios da musicalidade e ludicidade somam-se à ideia de um corpo que se movimenta e constrói significados para a sua existência. Entender que o corpo é também melodia e que através dele é possível brincar e celebrar a vida é um movimento que conecta a infância à uma perspectiva anticolonial. Nesse sentido, Azoilda nos convida a valorizar a brincadeira enquanto linguagem essencial da infância. 

Por fim, a cooperatividade nos movimenta a construir junto às crianças um terreno fértil para uma cultura pautada na coletividade. Resgatar e apresentar para crianças a importância daqueles que vieram antes de nós, além de estabelecer um convívio saudável e potente junto àqueles que dividem conosco o agora, pode ser revolucionário. 

O caminho para uma educação que se distancie das expressões coloniais e que compreende a criança enquanto parte da sociedade perpassa pela mudança de nossas práticas pedagógicas. Se o racismo é ensinado, o antirracismo deverá ser prática diária. Ler Azoilda é um dos caminhos para nos conectar com um projeto de sociedade mais próximo fértil para nossas crianças negras. 

Frase escrita por estudantes do 2º período da Educação Infantil, em uma UMEI da cidade de Santa Luzia.

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