Há vinte e cinco anos o universo político europeu foi surpreendido por um gesto de Antonio Negri, filósofo italiano e ativista de esquerda. O grande especialista na obra de Baruch Espinosa, teórico da globalização e um dos fundadores do Potere Operaio e da Autonomia Operaia, se encontrava exilado na França havia quatorze anos. Em uma Europa ainda não plenamente unificada, ele vivia na terra da liberdade, igualdade e fraternidade (e também da forte extrema-direita) amparado pela Doutrina Mitterrand, destinada à acolhida de refugiados políticos, depois de uma controversa condenação à prisão em seu país natal. Na Itália ele cumprira parte da pena que lhe fora imposta, antes de passar à imunidade parlamentar ao ser eleito deputado. A liberdade não duraria muito, apenas o tempo de seus colegas a cassarem, o que o fez atravessar a fronteira.
A surpresa naquele ano de 1997 foi o anúncio de seu regresso ao país natal, onde sabia que seria de imediato detido, o que de fato aconteceu. A incriminação que sobre ele pairava era a de associação às Brigate Rosse e, portanto, cumplicidade na conspiração armada contra o Estado, terrorismo, assassinatos etc. Vindo a cumprir mais alguns anos de prisão nessa nova fase, Negri declarou que as acusações que lhe imputavam eram injustas, mas que, no entanto, assumia a responsabilidade histórica por participar da consecução daqueles anos que são conhecidos como anni di piombo, os anos de chumbo, expressão que também por aqui empregamos.
Lembrei-me de Negri nessas últimas semanas, mais especificamente de seu posicionamento a respeito dos próprios atos, ao observar o comportamento do então candidato à presidência da República, e ainda nosso mandatário maior, Jair Messias Bolsonaro. O impulso inicial foi sua reação ao ato (terrorista?) do ex-deputado Roberto Jefferson, que recebeu a tiros de fuzil e lançamento de granadas os servidores públicos, policiais federais, que foram até sua residência para executar uma ordem do Supremo Tribunal que transformava a prisão domiciliar em regime fechado.
Parceiro de longa data de Bolsonaro, mas com direito a um estágio de apoio à eleição e ao primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, Jefferson deveria ter sido neste ano o candidato a presidente pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sigla que já abrigou em sua história nada menos que Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, mas que com o fim do bipartidarismo foi parar nas mãos de Ivete Vargas. A ditadura ainda em ação fez a manobra para que a agremiação não fosse para os domínios de Brizola, governador do Rio Grande do Sul nos anos 1960 e em 1982 eleito para o mesmo cargo no Rio de Janeiro. Restou ao caudilho gaúcho a fundação do Partido Democrático Trabalhista, o PDT. Arremedo do que já foram, o PTB, depois do indeferimento por parte do Tribunal Superior Eleitoral do primeiro pretendente, lançou o autodenominado padre Kelmon como escada para Bolsonaro, e o PDT saiu-se com Ciro Gomes no pleito que acabamos de viver.
Depois que Jefferson disparou os cartuchos de fuzil e atirou as granadas gritando, segundo contou, “corre”, o presidente disse não ter nada a ver com o assunto, repisando algo que afirmara muitas vezes ao longo dos últimos quatro anos, isto é, que dele se cobra por atos pelos quais não tem responsabilidade. Fica difícil concordar com ele ao lembrarmos do falatório segundo o qual “povo armado jamais será escravizado”. Não se restringindo às pistolas e fuzis que tanto ama, Jair chegou a anunciar, perante às milhares de mortes durante a pandemia de Covid-19: “E daí, eu não sou coveiro”.
Entre as cinzas da política que os últimos anos nos legaram, resultado da destruição do discurso razoável como ação necessária para a construção da polis, figura em destaque o desenraizamento da responsabilidade histórica. Uma das bases para isso é o desprezo à democracia, que se vê composto, entre outros tópicos, pela aversão à busca pela objetividade dos fenômenos. Esta, por sua vez, depois de ser aviltada por posturas irracionalistas de todo tipo (inclusive universitário), ganhou contornos de farsa completa na voz do candidato Bolsonaro: dia desses, para desqualificar críticas que lhe foram endereçadas, disse que se tratava de “narrativas”. É sintomático que ele assim considere um argumento ou informação factual, contra os quais inventa uma historieta estapafúrdia. Pouco a pouco vai se sedimentando uma sensibilidade que supõe e provoca imunidade e até mesmo aversão em relação à história.
Concorre para isso a disseminação ininterrupta de imagens e palavras pelas redes sociais, o que foi chamado por Beatriz Sarlo, já há alguns anos, de produção de uma memória de Alzheimer. Esquece-se rápido, no entanto, não apenas porque de imediato há outra “narrativa” – mesmo que sem pé, nem cabeça –, mas porque ela corresponde às demandas emocionais e aos afetos mais perversos de cada um. Miséria pouca é bobagem.
Para saber mais
ANDRADE, Fernando Grostein de. Quebrando Mitos., 2022. Acesse aqui. (documentário).
DIEGUEZ, Consuelo. O ovo da serpente: Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 328 p.
NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem: poder e potência em Espinosa. São Paulo: Editora 34, 2018. 416 p. (Tradução de Raquel Ramalhete).
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