Um conto em atos e fatos

Ivane Laurete Perotti

Esta narrativa nasce de um projeto justificado na catarse. Do mal. Do fel. Do execrável. Por fundamentos, os fatos. Objeto: o inaceitável. Metodologia: literária. Única possibilidade de trançar dedos e arregos. Constatação da derrota. Social. Refúgio à necessidade de explicação. Ou aceite da involução de nossa sociedade que ainda não purga: destila ódios como bandeira em riste. Triste. Hipótese: conjunto de esvaziamentos pessoais e coletivos. Maquinaria a favor da destituição de humanidade.

O mal cose. Cirze. Coisifica. Sufoca. Mata. Foi a afirmação mais serena que ouvi desde o 30 de outubro. Sentado em um tamborete, esperando na fila pelo momento de entrar no jogo de xadrez, o professor aposentado agregava parceiros. Gentes desejosas por compreensão. Das ruas coalhadas de estupidez. Das arrogâncias. Manipulações. Estultices. Conversavam atualidades e outras preocupações.

_ A gente tá falando da vida dos ôtro, dona. Daqueles lá…

_ Pode chamar de “trouxas”, minha filha. Não passam de “bucha de canhão”.

Pequena, a praça reunia pensadores. Manhã de sol e frio. Antítese da natureza. Algumas jogadas de xadrez e muitas histórias. Exercício democrático da narratividade. Milícias e tiros, banidos pela raiz, não vingavam ali. Com a lógica das sintonias, desconheciam o espaço.

_ Aqui, dona, é a Praça da República Domingueira.

_ Domingal.

_ Dominical…

_ Entendeu, né?

A conversa fervia em torno das mobilizações criminosas que haviam tomado a cidadezinha.

_ Maior pobrema é na BR. Gente sem noção.

_ Noção eles têm, compadre. Falta senso!

_ Do ridículo!

_ A gente ri de nervoso, filha. Só prá aliviá o peso.

_ Todo mundo aqui sabe das consequênça.

_ E ninguém consegue expricá o inexpricável.

_ É muito ódio sem razão!

_ Razão tem, foi plantada feito inço.

_ Erva daninha…

_ Parece a tar da bassôra di bruxa, lá das Bahia. Alembra?

_ Se não! Praga levada por um homem pago… pura motivação política.

_ Um desastre!

_ Um crime!

_ Ô, psor, não vai tê história hoje?

Então, conheci um professor em plena comunhão de histórias. Narrativas. Da vida. Do mundo. Do mundo da vida.

_ A vida do mundo é por demais grotesca, dona! Demais! Tamo aí para provar.

_ Bom seria se encontrássemos explicações…

_ Temos. Com datas e fatos.

_ Muitos anteciparam a situação.

_ Ouvidos moucos…

_ Certo.

_ Tão certo quanto a história que desconhecemos.

_ Desconhecemos o nosso passado.

_ O nosso e o deles. Perigoso!

_ A culpa é dos celular. Dos zapzap.

_ Não, compadre. Eles ajuda, né! Mas são apena uma das …das…

_ Bestas. Do …tá lá na …

_ Pode até ser. Que de besta este país está cheio. Mas a gente precisa enfrentar o problema que está aqui. Agora.

_ Ih! Isso vai ademorá!

_ Depende!

_ Do quê?

_ De um tudo.

_ Das vontade do povo.

_ Das ignorança…

_ Dos ódio!

_ Ôh!… vamu iscuitá as história du psô! Simbora, cumpadi!

“Em uma ilha quase emersa, cercada de águas por um dos lados, alguns nativos e outros intrusos traçaram um plano de dominação. Destituídos de hombridade, chafurdando sobre valores de toda ordem, uniram-se para dizimar o povo e solapar o território. E não estou falando apenas do visto e ampliado. Falo de território como palavra guarda-chuva. Pois, avançaram sobre o individual e o coletivo. Produziram farsas. Mentiras. Implantaram ideologias obtusas. Reacionárias. Fascistas. Hegemônicas. Viam-se os dentes do Mussolini. O sinistro bigode do Hitler. Funestos. Eles e aqueles. Facínoras. Todos. Pai, filhos e o espírito maligno que os acompanhava.

Com um golpe, assumiram o poder. Se Caronte não teve uma rampa para chamar de sua, criaram-na. A capital da ilha transformou-se em palanque de horrores. Rampas. Trampas. Hades ganhou ministério. O pseudo líder pensava-se Zeus: imbrochável. Chulo. Grotesco. Des/pirocava potocas. Comprou próteses penianas para todos os aquartelados. Pobres soldados! Pagarão por páginas e páginas de registros e picardias. Pilhérias e assombros. O fascínio doentio pelo assunto seria indício psicanalítico em qualquer tempo freudiano.  A temática da sexualidade volante respingou em toda a nação. Alguns nativos, com igual teor de insegurança, imitaram-no. |Repetiram-no. Não fosse história fantasiosa, ganharia cadeia. Xilindró!

Contudo, isento de brios e inteligência, o pseudo arrotava esgotos. Era um “J-bobo” na orquestra de projeto traçado à capital. Selvageria à direita. Um boneco do mal. Emissário da morte. Boçal e temerário em igual medida. Rezam que a ilha só não padeceu mais por míngua de inteligência e excesso de narciso no dito cujo. Deus sabe o que faz. E quando não sabe, a natureza se encarrega de equilíbrios. Um assombro!

Fantoche macabro, geriu a ilha por quatro longos anos. Peça de uma engrenagem oculta, viveu dias de fanfarrices. Da galhofa ao deboche, promoveu o “demonismo puro”, nas palavras de Orwell. Matou. Armou para matar. Hasteou a bandeira do ódio. Da cisão. Marcou a ilha com negação e roubos. Liderou esquemas. E a tudo creditou segredo.  Por mais que eu não consiga contar aqui todas as atrocidades, vocês podem imaginá-las.”

O silêncio na fila para o xadrez lembrava casca de noz. Rugoso. Profundo. Esculpido ao natural. Até um dos presentes cortá-lo em tiras:

_ Ô… ô Damásio? Essa história aí não tem fim, não?

_ Tem. Até que tem. Mas vai levar tempo.

_ Não tendi umas cosa aí, psô.

_ Fale, homem!

_ Comu é qui o povo da ilha dexô isso tudu acontecê?

A profundidade é algo íntimo. Depois que você a conhece, não consegue escalá-la, simplesmente. É necessário refazer o caminho do mergulho. Palmo a palmo. Linha a linha. Como se, em conta-gotas, medisse as chuvas da primavera. Não mede. Mas pode angariar paciência no fundo dos fundos. Lá onde reside uma parte da compreensão. A outra, é tão pessoal quanto as escolhas que atravessam o tempo. Possíveis. Improváveis.

Diante de todos, o “Bronstein” marcava o tempo dos lances. As jogadas avançavam na linha do cronômetro duplo. O tabuleiro engolia peão. Rainha. Bispo. Olhos na mesa. Ouvidos de fora

_ Não entendo isso. Ninguém percebeu?

Comentários somavam-se na mesma direção. A sopa argumentativa recolhia temperos. Surpresas. Angústias. Emoções inesperadas. Sangue quente

_ Viram. Todos viram. A maioria negou. Outros deram ombros. Grande parte fez de conta…

_ Difícil demais. Essa história é de… parece que eles fizeram gato e sapato da ilha.

_ Um caos.

_ Programado. Arquitetado.

_ Então, os nativos não tiveram culpa!

Estilhaços ruidosos saltaram da casca de noz. Ruídos são prenúncios sem comprovação garantida. Nem sempre se procura o começo do barulho. A fonte da perturbação. Assim é. Vários fatores interferem na equação. A exemplo, a vontade de descoberta. Uma vez descoberta, a informação pode incomodar. Agitar. Pedir tratamento. Urgência. Sabe-se lá!

_ Culpa? Como não?

_ Olha, quando a gente toca uma boiada, ela anda conforme o boiadeiro.

_ Bois…hum!

_ Então…

_ Gentes, pessoas…não podem ser “tocadas”.

_ Podem… durante o tempo do engano. O que lhes salva?

_ O tempo?

_ Talvez, mas sem…

_ Conhecimento!

_ Xeque-mate!

Da jogada saía um. O perdedor. Jogadores e participantes assumiam lugares. Na fila. Na mesa de jogo. Desejei passar a tarde naquela praça do interior.

_ Gostou da história, minha filha?

_ Boa narrativa, com certeza. Uma…

_ Fábula atual.

_ Ô… ô professor?

_ Diga, compadre!

_ Tem certeza que terminou essa história?

_ Não! Terminou não. A ilha ferve incompreensões.

_ E a justiça?

_ É balança no tempo e no espaço.

_ Demora?

_ Não carece.

_ Segue os trâmites.

_ E o povo morto?

Calou-se a casca de noz. Colou os pedaços em mira de estalos. Olhos de enigma triste olhavam sem ver. Grudavam-se naquele espaço que tomba diante do inenarrável. Incontestável! Milhares de mortos.

_ A memória do povo é um …

_ A justiça tem arquivos.

_ De fato!

As duas telas do cronômetro marcavam presença. Atrás delas, a balança da justiça pesava os atos.


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