Quando as escritas de si se tornam sementes: mercado editorial, ensino e as dimensões pedagógicas das narrativas de liberdade

Alexandra Lima da Silva

Nos últimos 10 anos, tenho me dedicado a ler e a escrever sobre as narrativas de liberdade. Uma pergunta que sempre me fazem é: Por que houve tantas autobiografias e narrativas de liberdade publicadas nos Estados Unidos e na Inglaterra e o mesmo não se verificou no Brasil? 

Uma resposta possível para esta questão é o viés do mercado editorial, que no Brasil era bastante diferente do mercado editorial nos Estados Unidos e na Inglaterra. Outro aspecto são as diferentes estratégias de enfrentamentos adotadas pelo movimento abolicionista nos Estados Unidos e no Brasil. 

É importante considerar também, que desde meados do século XIX, há uma aristocracia negra em ascensão nos Estados Unidos, com recursos e capital financeiro disponíveis para investir no mercado editorial, por exemplo. Esta é sem dúvida uma questão que merece reflexão e, quem sabe, aprofundamento em outros estudos. No caso brasileiro, as escritas de si de pessoas libertas e escravizadas podem ser localizadas em outros suportes, como cartas, manuscritos, panfletos, periódicos e parágrafos autobiográficos em testamentos e outros documentos notariais. 

No Brasil, o interesse pelas traduções das narrativas de liberdade ocorreu em momentos de efervescência e tensões sociais: no século XIX, na luta pelo fim da escravidão; no século XX, no âmbito das comemorações em torno do centenário da Abolição; e no século XXI, a partir de toda agenda antirracista e das revoltas  e mobilização do movimento negro após brutais assassinatos de pessoas negras, dentre as quais, destaco os mais recentes: Marielle Franco, João Albeto de Freiras, João Pedro Mattos Pinto, no Brasil e George Floyd e Breonna Taylor, nos Estados Unidos. 

Reconhecer e respeitar autonomia docente é fundamental, dito isso, sugiro que os usos das escritas de si em sala de aula devem ter como objetivo principal a construção de pensamento crítico, o que exige o entendimento da educação como prática de liberdade, conforme ensina bell hooks: 

“Em todas as instituições de ensino hoje há professores que responderam de modo construtivo à crítica aos preconceitos: mudaram o currículo e optaram por ensinar de maneira a honrar a diversidade de nosso mundo e dos estudantes. São corajosos esses professores que reconhecem que as salas de aula devem ser lugares onde a integridade é valorizada para que a educação como prática de liberdade se torna a norma, porque o mundo ao seu redor desvaloriza a integridade. Escolher manter padres elevados para o engajamento e o desempenho pedagógico é uma forma de assegurar que a integridade prevalecerá”( hooks, 2020, p.65). 

A partir do mapeamento das edições mais recentes das narrativas de liberdade, é possível compreender que este movimento de traduções, ainda que tardio, é parte das muitas lutas da população negra no Brasil, sendo o acesso à literatura de autoria afrocentrada uma das muitas demandas desta população, sedenta por conhecimento e por conexão com outras experiências diaspóricas. Após um longo processo histórico de silenciamento, o mercado editorial brasileiro tem demonstrado especial interesse pela autoria negra em primeira pessoa. O debate em torno da importância da representatividade, do protagonismo negro e da visibilidade são outros aspectos dignos de nota. 

Nas últimas décadas, a luta da população negra no Brasil gerou muitas conquistas na área educacional, como a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.

A institucionalização da política de cotas nas universidades públicas foi outro avanço importante para o enfrentamento do racismo estrutural no Brasil. 

Tais políticas públicas foram as responsáveis pelo aumento do acesso de pessoas negras nas universidades públicas brasileiras, tendo em vista que “estudantes pretos ou pardos passaram a compor maioria nas instituições de ensino superior da rede pública do país (50,3%), em 2018” (IBGE, 2019). 

Ainda que a presença negra nos bancos universitários tenha aumentado significativamente desde a década de 2000, como enfrentar a lógica eurocêntrica e construir outras epistemologias na cultura universitária brasileira? Por que democratizar o acesso a obras escritas por pessoas negras é urgente no Brasil contemporâneo? 

O mercado editorial e a escrita de autoria negra são indispensáveis para transformar a consciência racial brasileira, no sentido de o país reconhecer-se e afirmar-se negro, valorizando a negritude. A existência de uma bibliografia mais plural, para além dos cânones europeus, com a inclusão de autorias negras, também é parte deste movimento formativo. Apesar de ser um investimento tardio por parte do mercado editorial brasileiro, a tradução de obras de autoras fundamentais para o feminismo negro é mais um aspecto da luta pela democratização do acesso a outras narrativas, para além das eurocentradas ou produzidas exclusivamente por pessoas brancas.

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