Catástrofe como norma

Alexandre Fernandez Vaz

“Talvez ele possa levar uma garrafa de água para a família dele, que estará precisando”, retrucou-me meu pai, depois de eu dizer que não via sentido que um amigo, que estudava e vivia em Florianópolis, fosse a Blumenau, cidade que se encontrava imersa na maior enchente que o Vale do Itajaí jamais vivera, em julho de 1983. Eu era quase uma criança, mas já tinha vida de jovem profissional do esporte, com sessões de treinamento diárias que me deixavam quase sempre à beira do esgotamento. De preocupado com a incerteza sobre uma viagem a Brasília, para os Jogos Escolares Brasileiros (que eu pretendia vencer, depois de chegar ao vice-campeonato da corrida de 5000 metros no ano anterior) reorientei minha atenção para a calamidade que acontecia a menos de 150 quilômetros de minha casa. Finalmente, dava-me conta da importância do fenômeno e do que ele significava para a vida de muita gente. Nada foi igual depois daquele julho frio e chuvoso e jamais esqueci a lição recebida. Santa Catarina não enviou delegação à competição e nada de ruim aconteceu por causa disso.

Naquele mesmo contexto, enquanto a Universidade Federal de Santa Catarina estava em férias e seus ginásios de esporte eram usados para armazenar donativos, um outro amigo, já universitário, asseverava: “Enchente é guerra”. Ele atuara como voluntário em Blumenau e regressara de lá muito impressionado. Embora não soubéssemos muito bem o que era uma guerra, ainda havia resquícios (e não eram poucos) de uma delas entre nós, já que naquele mesmo ano ainda houve professor em Florianópolis tendo a casa invadida por forças da repressão porque teria, na biblioteca, livros subversivos. O quadro não é o mesmo, mas os ecos daquele tempo têm se nos avizinhado: governo autoritário junto com catástrofe de grandes proporções foi o que vivemos no Brasil durante a pandemia de SARS-CoV-2; em concomitância a isso, perseguição à literatura é um exercício cada vez mais frequente no espectro do extremismo de direita. 

Na guerra as formas de violências são várias e os limites civilizadores se esgarçam de maneira muito perigosa. Suspensas as regras, o convívio precário dá lugar ao saque, ao roubo, ao estupro e ao homicídio. É o que o amigo viu há mais de 40 anos, é do que ouvimos falar e a respeito do qual lemos diariamente sobre o que vem acontecendo no Rio Grande do Sul. A guerra é para alguns um excelente negócio, e não é diferente em uma catástrofe como essa que está no Sul, mas que diz respeito a todos nós. Ao ficar sabendo que uma garrafa de água mineral fora vendida por R$80,00, entendo um pouco mais a humanidade e essa forma de vida que escolhemos não superar, o capitalismo.

Mas o negócio não é apenas dessa natureza. Umberto Eco disse certa vez que as redes sociais deram voz a uma verdadeira legião de imbecis. Sim, é verdade, e a muitos covardes e oportunistas também. Eles – que são deputados e supostos comediantes, vereadores e fanáticos desocupados senadores e oportunistas, sem que uma condição exclua a outra – não perdem oportunidade para mostrar sua desfaçatez, e agora gritam mentiras e mostram imagens descontextualizadas para atacar o governo federal. O mais espantoso, ainda que pouco surpreendente, é que vários deles são os mesmos negacionistas de outrora, e que hoje plantam e ou espalham notícias falsas a respeito das ações federais. Eis uma boa maneira de desviar o foco dos responsáveis pela catástrofe, vários deles aliados com esses profetas de internet. Que as mortes no Rio Grande do Sul estejam sendo um bom negócio, e para essa gente, é de estremecer a alma.

Não que Lula represente tudo o que é certo nessa batalha. Não há dúvidas sobre o empenho logístico e fiscal, político e técnico, que vem sendo realizado, inclusive com o emprego correto, afinal, das Forças Armadas. No entanto, quando ouço o presidente dizer que vai solicitar a Marina Silva um plano de prevenção a acidentes climáticos, fico desconcertado, uma vez que a ministra, outros ambientalistas e cientistas vêm há anos advertindo para os riscos de desastre. Por que não tínhamos um plano? Por que o governo não consegue sequer ser politicamente liberal, a ponto de tentar garantir um desenvolvimento menos destrutivo? Frente às infelizes declarações do governador do Rio Grande do Sul, penso no mau-gosto que é criticar o mandatário federal. Mas é que dele esperamos, com razão, um pouco mais do que tem feito.

Naqueles anos 1980 das enchentes em Santa Catarina talvez soubéssemos, ao menos intuitivamente, como hoje novamente, o que é estar em guerra, esse estado permanente que caracteriza nossa existência neste país em que a violência é a norma e o salve-quem-puder o método. Acabo de escutar no rádio que o Grêmio de Football Porto-alegrense vai usar o centro de treinamento do Corinthians, em São Paulo, e receber adversários no estádio do Coritiba, na capital paranaense, porque “vai ter que disputar a Copa Libertadores”. Assim como os Jogos Olímpicos de 1972 continuaram, mesmo depois do sequestro e assassinato de onze atletas judeus israelenses – The games must go on, disse o organizador daquelas Olimpíadas, em Munique – uma equipe de futebol se vê “obrigada” à competição, mesmo com seu estado de origem colapsado. É só uma pequena mostra do espírito do nosso tempo: alguma coisa entre o cinismo e a barbárie.

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