Esquerda política: (auto)crítica e democracia

Alexandre Fernandez Vaz

Era mais fácil dizer-se de Esquerda durante a Guerra Fria, mas já há três décadas, depois de seu fim, as coisas ficaram mais complexas. Os acontecimentos recentes na Nicarágua, e há alguns meses em Cuba, só aumentam o desconcerto. No país caribenho, outrora paraíso tropical do socialismo, as manifestações contra a ditadura, que não arreda pé, seguem em ondas, com o provável apoio dos Estados Unidos e da comunidade em Miami, enquanto em Manágua, do ímpeto revolucionário só restou a violência, mas em versão inaceitável.

Nos anos 1970 e na década seguinte, a leitura de A Ilha, livro-reportagem de Fernando Morais, dava o tom. Os avanços sociais em Cuba pareciam ser mostra de que era mesmo possível chegar ao destino anunciado como inexorável, ainda que houvesse o embargo estadunidense, as ameaças vindas da Flórida, a incompreensão do lado de cá do mundo. A preço popular, dava para encontrar um exemplar da obra em prateleiras suspeitas nas bancas de jornal do centro da cidade de Florianópolis. Junto com ela, mas mais ao fundo das estantes, estava o manual Guerra de guerrilhas, assinado por Ernesto Che Guevara. Eram tempos em que vez por outra aparecia na UFSC uma fita de VHS com imagens do Festival de Varadero, no qual a música popular latino-americana dava as caras para celebrar a revolução. Chico Buarque, Kleiton e Kledir Ramil, Elba Ramalho, Olívia Byington, e mais alguns, estavam lá, dividindo a tela com locais que diziam sobre a resistência a um iminente ataque ianque, para o qual estariam preparados.

Quanto à Nicarágua, a criança que eu era acompanhava pelos jornais e pela TV o que acontecia no processo revolucionário: a Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN), apoiada por Cuba e avançavam sobre a capital, de um lado, enquanto de outro os contrarrevolucionários financiados pelos Estados Unidos (o governo Reagan chegou apoia-los, de forma clandestina, já depois de consolidado o novo governo) e propagandeados pela imprensa ocidental – uma guerra se disputa, também, nas representações sobre ela –, protegiam o ditador e títere estadunidense, Anastácio Somoza. Admirávamos Daniel Ortega naquele momento, assim como quando perdeu nas primeiras eleições diretas no país e entregou o cargo a seu vitorioso opositor.

Isso tudo foi posto em xeque depois que o short century, como o século vinte foi chamado por Eric Hobsbawm, acabou. Já não há quem se atreva a bradar o quanto a pequena Albânia iluminava o futuro do mundo com seu peculiar comunismo, ainda que de vez em quando apareça algum incauto para saudar o camarada Kim Jong-um, líder supremo da Coreia do Norte. Mesmo com tudo isso, eis que tivemos que conviver nos últimos anos com a insistente retórica anticomunista, evocando a perigosíssima ameaça à liberdade que seria a volta dos vermelhos ao poder (eles voltaram e, entre cor-de-rosa e azuis, e depois de apenas dois meses, já fizeram as coisas melhorarem muito). Apesar do caráter mais que anacrônico de tal posição, há algo que talvez se possa saber por meio dela, se a entendermos como sintoma. Um pouco da incapacidade da Esquerda de dizer a que vem se mostra, mesmo que de forma caricata, nessa retórica que retoma o vocabulário da Guerra Fria. Fosse a Esquerda mais firme e lúcida em suas posições, talvez o debate público estivesse menos enevoado e o espaço para as bravatas e mentiras fosse mais estreito.

Um primeiro gesto, nada fácil, é romper os compromissos com o autoritarismo. O poder ditatorial (ou o que se aproxima dele) é sedutor, mas sabemos bem aonde o pacto com ele nos leva.  Isso inclui a justa crítica a Fidel e seus discípulos, a Maduro (e a Chaves, por quem Jair Bolsonaro não escondeu, há anos, sua admiração) e também ao que se tornou o Sandinismo na Nicarágua. O elogio da revolução não pode fazer fechar os olhos para o terror. Isso vale tanto para a França insurreta, como para Cuba, o pequeno e valente país que resiste ao odioso embargo, mas que perseguiu, torturou, matou, tratou a homossexualidade como crime e se recusa a se reconstruir como democracia. Sobre a Nicarágua, o Brasil tem mostrado posição ambígua, preocupada com as violações dos direitos humanos, mas se recusando à crítica mais contundente. O próprio Lula, quando em campanha foi questionado sobre Ortega, comparou seus muitos anos como presidente à presença igualmente longeva de Angela Merkel na condição de primeira-ministra da Alemanha, esquecendo-se das diferenças, mais que formais, entre um e outro regime.

A crítica da Esquerda tem que passar, então, por uma autocrítica, tanto pelas posições que tomou, reconhecendo-se o contexto histórico em que isso foi feito (crítica não significa flagelação), quanto pelos erros e crimes que cometeu, lá fora e aqui. Ademais, criticar não significa necessariamente abandonar, muito menos defender aqueles contra os quais as forças revolucionárias se colocaram. A crítica de si, exercício tão saudável quanto raro, se refere também à falta de radicalidade com seus propósitos, a exemplo das conciliações, acima de tudo, que marcaram os governos petistas entre 2003 e 2016. Deu no que deu. Esquerda que não é anticapitalista e democrática tem que receber outro nome.

Tudo isso pode parecer supérfluo agora, quando o alívio parece ser o sentimento predominante, e a barbárie vem sendo, de fato, enfrentada pelo novo governo. Mas, sem crítica e autocrítica, o discurso por igualdade, justiça social e liberdade perde fundamento e credibilidade. Sem elas, assim como sem uma posição firmemente democrática, é difícil ter forças para o mais importante: a solidariedade irrestrita com vencidos da história, mesmo que isso resulte em não frequentar o pódio eleitoral com tanta frequência quanto se gostaria. Não eclipsar a experiência histórica do sofrimento significa, no mais das vezes, escovar a história a contrapelo, ainda que isso arrepie a sede por poder. Política se constrói na esfera pública, não nas coxias de Brasília, tampouco em mensagens escusas pelo WhatsApp.

Para saber mais 
GOLDEMBERG, Miriam. Nicarágua, Nicaraguita: um povo em armas constrói a democracia. Rio de Janeiro: Revan, 1987. 155 p.

HOBSMAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 632 p. (Tradução de Marcos Santarrita).

MORAIS, Fernando. A Ilha: um repórter brasileiro no país de Fidel Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 264 p.


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