A declinante militarização do ensino em nosso país foi instituída em setembro de 2019 por meio de um decreto presidencial relativo à criação das Escolas Cívico-Militares. Tal documento estabelecia como objetivo a melhoria na qualidade da educação básica, uma parceria entre o Ministério da Educação e o Ministério da Defesa e fixava seu implemento em colaboração com os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Dentre as várias orientações, apareciam o fortalecimento dos valores humanos e cívicos, a adoção do modelo de gestão escolar baseado nos colégios militares, o emprego de práticas pedagógicas e padrões de ensino dos colégios militares e a contratação de militares inativos para atuarem nas áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa.
Um balanço sobre essas escolas apresentado em fins do ano passado pelo Ministério da Educação revelou a presença de duzentas e duas instituições de ensino dotadas com cento e vinte mil alunos. Trinta e nove localizadas na região norte, vinte e seis na região sul, trinta e sete na região nordeste, quarenta e seis na região sudeste e cinquenta e quatro na região sul. Ocorreram dezoito capacitações para mais de treze mil profissionais e cerca de mil e quinhentos militares exerceram atividades. A violência física e a patrimonial foram reduzidas em oitenta e dois por cento, a verbal em setenta e cinco por cento. O abandono escolar diminuiu quase oitenta por cento e o investimento aplicado alcançou cento e quatro milhões de reais.
Vale recordar que esta militarização não possui o logotipo do ineditismo. Com efeito, sabe-se que ela vem se manifestando desde há muito tempo. Logo no início do século vinte no âmbito dos Grupos Escolares e das Escolas-Modelo emergiram os batalhões infantis. Após a Primeira Guerra Mundial uma ênfase foi dada à educação cívica por meio do escotismo como fator de educação do caráter e de defesa da pátria. Alguns anos antes do término da Segunda Guerra Mundial, e por ela influenciada, a educação moral e cívica adotou a finalidade de forjar a consciência patriótica do aluno. No decorrer do regime ditatorial foi instituído o ensino de moral e civismo. Desde há alguns anos o Exército vem concretizando um projeto para crianças denominado Atiradores Mirins.
Cabe lembrar também que ela não é uma iniciativa exclusiva de nosso país. Na Coreia do Norte, que tem o quinto maior exército do mundo, a mesma visa a capacitação de todos os coreanos para enfrentar a guerra. Na China, que agrega o maior exército do planeta, o objetivo é conter a disseminação de concepções e valores liberais. Em Israel, que conta com forças armadas mais reduzidas, porém consideradas as mais qualificadas entre todas, é voltada para o fortalecimento do nacionalismo. Nos Estados Unidos, que têm um enorme e qualificado exército, a ascensão do sentimento patriótico e o recrutamento de jovens se mostram como os objetivos almejados.
Embora tenha vigorado por três anos seguidos, a militarização do ensino em nosso país parece estar chegando ao fim. De fato, em janeiro deste ano os meios de comunicação informaram que o atual governo, muito acertadamente, extinguiu a diretoria relativa às escolas cívico-militares. Assim sendo, o organograma do Ministério da Educação não mais contém este setor administrativo que era vinculado à Secretaria de Educação Básica. O novo ministro disse que há um processo de reestruturação em andamento, porém, ainda, sem o estabelecimento de nenhuma definição.
A expectativa de seu término abrangeu a grande maioria dos educadores, devido aos múltiplos aspectos negativos ostentados. O Ministério Público apontou uma série de ilegalidades: desrespeito ao propósito de que a regulamentação de sistemas de ensino deve ser feita através de lei oriunda do Congresso Nacional; inobservância da proposta de gestão democrática prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; desobediência aos princípios da dignidade humana, da inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral e do direito ao pluralismo político; ausência de apresentação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica; desvio de função pela presença de militares nas escolas e esbulho de recursos destinados ao planejamento decenal.
Em relação ao funcionamento das mesmas o Sindicato dos Professores do Distrito Federal indicou diversos pontos cabulosos dentre os quais constam o aumento do número de atos infracionais cujos mais recorrentes incluem ameaças, ações reais, lesão corporal e desacato e denúncias de agressões dos militares contra estudantes, as quais nunca foram devidamente apuradas e concluídas. Junte-se a isto o fato de que a qualidade da educação oferecida não se mostra superior às escolas de tempo integral da região nordeste e dos Institutos Federais de Ensino.
Acrescente-se que o modelo de educação militar transposto aos civis tem por fundamentação teórica certas concepções muito contestáveis. Ela é composta pelos temas da despersonalização e da conversão segundo Erving Goffman, pelas técnicas de desculturação, reculturação e produção de um novo habitus de acordo com Pierre Bourdieu e Jean Passeron e pelos recursos da disciplinarização, da vigilância e da punição abordados por Michel Foucault. Atualmente a experiência internacional relativa à formação castrense tem mostrado a sua dispensabilidade. Se não é mais imprescindível para preparar os fardados tampouco serve para a educação dos civis.
Agregue-se ainda a existência do marcante movimento da civilinização que é adverso à militarização. O fenômeno da militarização indica o encaminhamento de concepções militares e a presença de fardados em setores civis, visível em várias regiões do mundo. Entretanto, o evento da civilinização que aponta o rumo inverso, ou seja, o direcionamento de concepções civis e a presença de paisanos em setores militares, além da visibilidade é muito mais acentuado em diversos recantos do planeta. Afora isso, o desenvolvimento tecnológico nos países regidos pela democracia está firmando a supremacia da civilinização. Sem dúvida, em algum momento da marcha do tempo a militarização será superada pela civilinização. Portanto parece óbvio que a militarização do ensino via escolas cívico-militares se mostra como uma ocorrência extemporânea e descabida pois é ostensivamente adversa ao andamento do processo histórico.
Sobre o autor
Professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).
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