Em defesa da razão: Sérgio Paulo Rouanet (1934-2022)

Alexandre Fernandez Vaz

Não foi sem um gosto amargo que em 1990 deparei-me com a surpreendente incorporação de Sérgio Paulo Rouanet ao governo de Fernando Collor de Mello, o primeiro que começava com um candidato eleito para presidente diretamente, depois da ditadura civil-militar. Rouanet era então diplomata de carreira e um dos grandes intelectuais brasileiros, cuja intensa e vasta produção, se não era claramente de esquerda, se identificava com o campo crítico ao autoritarismo e ao pensamento conservador. Collor, por sua vez, era alguém vinculado ao que havia de pior na política brasileira, embora procurasse vender de si a imagem de paladino anticorrupção e promotor da modernidade.

Rouanet foi ministro-chefe da Secretaria Nacional da Cultura, e lembro-me de ele justificar o ingresso no cargo pela condição de servidor público que fora chamado a exercer uma função no Estado. Suponho que tal movimento tenha sido realizado, ao menos em parte, por causa da animação que tomara conta de José Guilherme Merquior, igualmente diplomata, amigo admirado por Rouanet, que acreditava que Collor pudesse ser o veículo para a implantação de certo social-liberalismo no Brasil. O tempo mostrou que ambos estavam errados, mas isso não desmerece em nada o trabalho de cada um deles, dois expoentes da vida inteligente deste país. Morto em 1990 sem ter chegado aos 50 anos de idade, Merquior deixou obra fecunda, e é lastimável que já não tenhamos liberais como ele, com quem sempre se aprendia, mesmo nas diferenças – ou talvez precisamente por causa delas. Em época dominada pelo charlatanismo intelectual e por uma vulgaridade sem precedentes, como a atual, é terrível que o último domingo tenha terminado também sem Rouanet, cujo falecimento se deu aos 88 anos.

Eu ainda estava na graduação quando, pela primeira vez, li um texto dele. Em um Sebo, encontrara um volume que me interessou exatamente pela introdução, escrita em parceria com Barbara Freitag, com cujo trabalho, em especial o livro Sociedade e consciência: um estudo piagetiano da favela e na escola, eu já tivera contato. O pequeno volume na estante de madeira era dedicado a Jürgen Habermas, fora organizado por ambos e compunha a coleção Grandes Cientistas Sociais, dirigida por Florestan Fernandes. Além do texto introdutório, havia mais seis ensaios do filósofo alemão, cada um deles dedicado a autores da geração precedente (Adorno, Arendt, Benjamin, Bloch, Marcuse, Scholen).

A leitura foi para mim uma revelação: pensamento crítico ancorado com solidez na melhor tradição intelectual, defesa da razão, confiança na faculdade do pensamento, tudo isso adensado pelo excelente comentário dos organizadores. Impressionei-me com tamanha e desafetada erudição.

Foram dois os livros que, em movimento simultâneo, me orientaram nas reflexões seguintes:  Teoria crítica: ontem e hoje, de Barbara Freitag, e As razões do iluminismo, de Sérgio Paulo Rouanet. Enquanto o primeiro é uma narração sobre a tradição analítica associada à Escola de Frankfurt, expondo as principais problemáticas a que tal perspectiva se dedica, o segundo é uma reunião de ensaios que procuram as bases da pluralidade da razão no interior de sua paradoxal unidade. Em jogo está a luta contra todas as formas de obscurantismo e a defesa de um universalismo ético que sustente o direito de afirmação da vida, da liberdade, da justiça e da igualdade. Filia-se Rouanet, portanto, àquele percurso que, das Luzes, desemboca no socialismo e no liberalismo, ambos em suas melhores versões.

Meu paulatino distanciamento das posições de Habermas, em especial das alusivas ao legado de Theodor W. Adorno, fez com que eu ponderasse igualmente algumas das abordagens de Rouanet. Mas não arrefeceu a admiração, tampouco o interesse no que ele produzia. Parecia sem limites sua curiosidade intelectual. Foi ele um dos pioneiros a destacar dimensões psicanalíticas na obra de Walter Benjamin (Édipo e anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin), autor sobre o qual publicou muito, inclusive uma das primeiras reflexões a respeito de Passagens, quando, em dois volumes mal havia saído na Alemanha. O grande intelectual tampouco deixou de escrever sobre o Brasil, dedicando-se à universalidade de Machado de Assis e aos destinos da razão nestas terras.

Em tempos tão difíceis, nos quais o pensamento leva diárias cotoveladas, não é a importante lei que leva o seu nome o maior legado que deixa, mas a confiança na força da razão e o investimento no pensamento crítico e autocrítico, do qual foi exemplar. Levanto-me, nesta noite cada vez mais fria que é a vida no Brasil, para aplaudir a obra de Sérgio Paulo Rouanet.

Ilha de Santa Catarina, julho de 2022.

Para saber mais
ROUANET, Sérgio Paulo. A razão cativa. As ilusões da consciência: de Platão e Freud. São Paulo: Basiliense, 1985.

ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


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