E quando a pedagoga se torna a chefe do escritório?

Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Imagine a seguinte situação: entre o final do primeiro bimestre letivo e o início do segundo, uma supervisora da escola, responsável pela parte pedagógica do turno, se dirige a um professor e faz a seguinte proposta “nós precisamos dos diários fechados, como o seu ainda se encontra em aberto, que tal você deixar uma atividade para os alunos na sala e vir para a sala da supervisão, podendo utilizar os computadores disponíveis, para lançar as informações e fechar seu diário?”. Sei que pode parecer uma anedota meio sem graça, mas não é. Esse foi um relato que ouvi de um professor, que jurou estar falando a verdade. Diante das repetidas confirmações por parte do professor após minha insistente incredulidade e recordando-me de outras situações, conclui tratar-se mesmo de uma descrição verídica.

No mês passado, em meu artigo publicado neste mesmo espaço, do Pensar a Educação em Pauta, intitulado “A escola é uma empresa? Os alunos são clientes? O professor é um prestador de serviços?”, analisei como a escola vem sendo cada vez mais subsumida às relações sociais capitalistas e como isso faz com que a educação, um direito humano fundamental, seja reduzida à condição de mercadoria. Este texto, portanto, é, de certa forma, uma continuidade do anterior, porque o modo como uma parte significativa do setor pedagógico das escolas funciona reproduz lógicas empresariais de gerenciamento, priorizando o preenchimento de documentos, repasse de informações normativas e cumprimento de prazos. Assim, esses profissionais estão se distanciando cada vez mais da pedagogia e exercendo a função de chefia de escritório. Não raro as pedagogas e pedagogos não leem livros sobre teoria e pesquisas pedagógicas, têm dificuldades em conduzir os estudos com as equipes de professores e tropeçam constantemente na resolução de conflitos.

Henry Braverman, em O trabalho e o capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX, outra vez contribui para uma compreensão assertiva. No capítulo sobre os trabalhadores em escritórios, ao longo de cinquenta páginas, o autor explicita detalhadamente como o escritório também foi modificado pelas formas de ordenamento oriundas das linhas de produção industrial. Durante a leitura, eu ficava espantado com as profundas semelhanças entre as práticas capitalistas que adentram as escolas, visando ao cumprimento de metas sob o signo do taylorismo.  Observemos um trecho da obra de Braverman: “Assim como Frederick Taylor diagnosticava o problema de uma oficina como o de retirar o conhecimento próprio ao ofício dos trabalhadores, do mesmo modo o chefe de escritório encara com horror a possibilidade de dependência por parte de seus funcionários do conhecimento histórico do passado do escritório, ou do rápido fluxo mecânico de informações no presente. O registro de tudo sob forma mecânica, e o movimento de tudo em forma mecânica é portanto o ideal do chefe de escritório. Mas a conversão do fluxo do escritório em um processo industrial de alta velocidade exige a conversão da grande massa de trabalhadores em escritório em mais ou menos simples assistente do processo” (BRAVERMAN, 1981, p. 293).

Isso posto, quando a pedagoga, ou pedagogo, se transforma em “chefia” de escritório, como vem acontecendo, há uma perda do próprio sentido da educação. A sala de aula, que não precisa ser exatamente a sala de aula, tem que ser o centro de todo o fazer educativo, tem que ser o coração da escola, não a secretaria ou qualquer outra função burocrático-administrativa, como ouvi com pesar certa vez. Pedagogas e pedagogos na função de supervisão ou coordenação, ao invés de sucumbirem a peças defeituosas de um escritório que não funciona, até porque insistentemente, e ainda bem, se recusa a sê-lo, deveriam acompanhar efetivamente a realização pedagógica. Como estão se desenvolvendo as aulas dos professores? Os educadores estão conseguindo realizar suas reflexões e práticas de forma a cumprir com o Projeto Político Pedagógico da escola? Como estão as relações sociais no interior da instituição e de seu entorno, contribuintes com o aprendizado e a cidadania? Quais os princípios e métodos para a realização das atividades, das pesquisas e das avaliações escolares? Como estão sendo utilizados os referenciais pedagógicos com vistas à construção de uma sociedade crítica e justa de fato? Essas são algumas das questões essenciais do trabalho pedagógico. Pedir para um professor deixar de lado seus estudantes para que preencha qualquer relatório, diário, formulário, livro de ponto, etc., é uma atividade antipedagógica por excelência. A escola e a sociedade como um todo perdem, reduzindo-se a equipamentos estatais/empresariais de contenção, nada mais que isso.

Para saber mais
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981.


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