Na semana passada, em um evento em São Paulo patrocinado por uma corretora de seguros, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que o Brasil não pode ser governado por analfabetos. A aparente alusão à Lula, mais do que demonstrar de que lado está no espectro político brasileiro, mostra também a visão reconhecidamente elitista que o ex-presidente tem em relação ao que seria educação e cultura. Seu comentário foi seguido das palmas dos ouvintes. Não é de estranhar mais essa patacoada do sociólogo, afinal, analisando o resultado das eleições de 2015, ele afirmou que Dilma fora reeleita graças aos votos dos “grotões” do Nordeste brasileiro, sem condições de discernir o que seria melhor para o país! Assim, parece que para FHC a participação na cena política deveria ser garantida apenas àqueles que têm “educação”, embora ele não esclareça o que entende por esse conceito. Mas é nítido nas suas ponderações que educação é um termo monolítico, unidimensional, que significa um distintivo social importante. Daí ele fazer tábula rasa da educação e da cultura da gente comum, aquela que vive em “grotões”, tem que trabalhar e sobreviver e não deveria poder governar.
Luiz Inácio Lula da Silva, sucessor de FHC na presidência da república, paradoxalmente deu alguns exemplos que o desmentem, mas que não são menos deletérios para quem imagina que a educação vale alguma coisa. Primeiro, ao afirmar com algum orgulho que nunca leu um livro na vida, mas não sentiu falta deles. Depois, jactando-se que um ex-metalúrgico sem escolarização tornou-se presidente da república. Em ambos os casos não se pode julgar as motivações pessoais do ex-presidente, que certamente tem razões pessoais de sobra para fazer os comentários que fez. Mas o que interessa aqui é observar como, na fala pública de dois personagens que juntos governaram o país por 16 anos, a educação aparece como algo que está fora da política.
Não precisamos relembrar as ridículas realizações no âmbito educacional patrocinadas por FHC sob a batuta de Paulo Renato e Souza e uma equipe de tecnoburocratas ligada às organizações internacionais, muitas das quais seguem nos programas do seu partido, hoje, em estados como Paraná, Goiás e São Paulo, como seguiram em Minas Gerais. Nesse ponto, pelo menos, os governos de Luiz Inácio Lula da Silva foram significativamente mais eloquentes. Se o ex-presidente não se preocupava com o tema, pelo menos algumas iniciativas relevantes foram desenvolvidas enquanto esteve no poder, certamente muito aquém do que o país precisa e do que poderia ser feito. Nos dois casos, todavia, a educação foi tratada como vetor de desenvolvimento econômico, motivo pelo qual houve uma incomoda continuidade nas políticas de avaliação, por exemplo, completamente afinadas a indicadores internacionais.
O paralelo que traço não é gratuito. A educação reduzida a fator de desenvolvimento econômico – revivendo o cerne das teorias desenvolvimentistas e da Teoria do Capital Humano – só pode ter um lugar obscuro na agenda política nacional. Afinal, se o problema do país é produtividade, competitividade, crescimento econômico, então todos os esforços devem ser feitos no incremento de uma educação que qualifique o trabalhador. Fazem eco a esse desiderato os empresários brasileiros, mas também figuras como Mangabeira Unger, “pai” do Programa Pátria Educadora, natimorto, e Aloisio Mercadante, o ministro multifuncional.
Com essa tônica se produziu uma verdadeira corrida por resultados nas nossas escolas públicas, mesmo porque muitas das políticas propostas previam, como ainda preveem, liberação de recursos mediante avaliação de desempenho. Com isso a educação se confunde com a instrução, com finalidades bastante demarcadas, voltadas para o mercado laboral. Essa lógica acaba dando razão aos dois presidentes: um, porque a despeito do fato de não ter “educação”, venceu todas as formas de resistência e se tornou o primeiro pobre presidente da república e uma das mais relevantes figuras políticas do Brasil, no mundo. Outro, porque em um momento de crise como o atual, claro que a “falta de educação” pode ser invocada como um problema que afeta os rumos do país. Afinal, sem esclarecimento suficiente (!?) toda política se torna uma aventura…
No entanto, além dos dois ex-presidentes darem “mau exemplo”, nada se fez em quase duas décadas para oferecer rudimentos mínimos do que venho chamando, juntamente com outros colegas, educação política. Talvez porque estejamos ainda marcados pela herança da Educação Moral e Cívica e da Organização Social e Política Brasileira, assim como pelos Estudos Sociais, dos tempos da ditadura. Mas se naquele momento o ufanismo calhorda incomodava, o resultado dessa ausência, hoje, é uma desqualificação absoluta da política no cenário cotidiano do país. Da grande mídia às manifestações de rua, a política foi abandonada em favor de ressentimento, raiva, rancor, ameaça, violência. Poucos procuram qualificar a política como o lugar onde os grandes problemas comuns devem ser debatidos e soluções devem ser encontradas, com o resultado claro que alguns cederão em favor do interesse comum. Parece que poucos são capazes de observar na política o exercício das diferenças. O que se vê hoje é a política tratada nos moldes dos profissionais dos partidos, fisiológicos e cegos ao interesse comum. Não espanta que a população não se sinta representada por ninguém, apesar da virulência que se abate sobre a cabeça da presidente Dilma Roussef. Claro que não estou me referindo à jogatina política dos partidos que aparelham o estado em todos os seus escalões, e que tem deixado marcas de difícil apagamento na memória do país. Refiro-me às possibilidades de educar para a convivência em sociedade, para a construção de um mundo comum, onde as diferenças sejam respeitadas como expressão de outras maneiras de ver e viver o que está no mundo. Nada tem sido feito nessa direção no país, por nenhum ente considerado “político”, menos ainda pelo(s) governo(s).
Parece que tomamos o aprendizado para a política como algo natural, que não precisa de um estímulo sociocultural importante. Aí nos surpreendemos e chocamos com ações como aquelas feitas pelos estudantes secundaristas de São Paulo no ano passado, estimulante em todos os sentidos. Pergunto: governos que proclamam reformas educacionais a cada 4 anos deveriam estar preocupados minimamente com as maneiras com as quais a população não afeita aos jogos políticos profissionais, participa cotidianamente da construção da sociedade? Se existisse, de fato, uma preocupação com a construção de um país melhor para todos, esse tema não seria negligenciado.
Por exemplo, porque tanta relutância em escovar a contrapelo a história oficial da ditadura civil-militar brasileira, algo que, inclusive, colocou FHC e Lula em posições muito similares? Não seria de imaginar que esclarecendo a população sobre os efeitos nefastos da ditadura – inclusive como fomento da corrupção que hoje está na ordem do dia – mas também pelo cerceamento da liberdade, pela arbitrariedade, pelo controle autoritário das instituições, pela violência gratuita etc., esse espectro teria menos possibilidade de pairar sobre nós? A defesa da volta do militares ao poder não soa uma clara falta de noção do que é a construção da política e do papel de cada instituição na sociedade? A defesa de heróis moralizadores, como vem sendo tratado o juiz Sérgio Moro, não mostra justamente falta de clareza em relação ao que deveria ser a construção coletiva, paulatina e cotidiana da ideia e de práticas de convivência em sociedade e da gestão comum de problemas comuns? A desqualificação da presidente Dilma Roussef, observadas já desde os grandes eventos esportivos há alguns anos, não embaralha o espaço público e o privado quando faz alusão à sua condição de mulher, e não ao cargo que ocupa? Ações cotidianas como apropriar-se dos espaços da cidade, sentir-se senhor do corpo e do desejo das mulheres, escarnecer e agredir gays, pobres, mendigos, migrantes, não são um bom indicativo de que aprender política é muito mais que tomar partido de candidatos performáticos com o dom da manipulação? Em uma das últimas turmas da graduação para a quais dei aulas, uma aluna perguntou porque um país tão rico como o Brasil não consegue acabar com a pobreza… Por trás da simplicidade da sua pergunta preocupa o fato de essa futura professora vir a trabalhar com crianças que são vítimas justamente de determinadas formas de organização social e econômica. Mas talvez isso nada tenha a ver com a falta de educação política… Importante, mesmo, é que ela tenha um bom desempenho no ENAD e os seus futuros alunos tenham sucesso nas Provinhas Brasil desse mundo.
Quando penso em educação política certamente penso na escola, embora tenha dúvidas se deveria haver uma rubrica com essa finalidade nos programas. Mas me refiro sobretudo ao fomento de iniciativas de participação popular, a começar pela juventude, nos processos de gestão da coisa pública. Refiro-me ao esclarecimento pela mídia, que tem entre os seus principais clientes governos de todos os matizes, dos sérios problemas nacionais em todos os âmbitos. Refiro-me a revisão dos programas escolares centrados pura e simplesmente na propalada aquisição de competências na maioria das vezes descoladas do cotidiano dos alunos. Mas também me refiro a falta de políticas públicas onde se possa aprender o exercício da convivência, da gestão de conflitos, do uso da voz para ocupar a cena pública.
Claro que existem ações de forma residual em um conjunto de iniciativas de diferentes movimentos sociais, felizmente. Mas os governos, em geral, simplesmente fazem tábula rasa da educação política, como parecem mostrar os exemplos de FHC e de Lula, talvez porque a educação seja apenas um item a mais na agenda econômica do país, e esteja longe de ser entendida como constituinte do universo da política. Se o consumo crescer e o pais enriquecer, então a política deixa de ser um problema. O quadro geral do país, hoje, mostra o equívoco dessa forma de administração pública unilateral.
Não tenho ilusões no que se refere às relações entre educação e política. Não creio que a educação possa “salvar” a política e não é a isso que me refiro. Além do que o conjunto de corruptos advogados, engenheiros, economistas, juízes etc. implicados nos atuais e antigos escândalos de desvio de fundos públicos apenas mostra que a educação, no seu aspecto formal, não significa que as pessoas serão melhores. Mas se pudéssemos produzir nas novas gerações uma compreensão mais aguda que viver com os outros exige um esforço permanente de escuta, diálogo, posicionamento, negociação, respeito, e que isso se afirma em uma ação consequente sobre e na vida pública, talvez déssemos um passo adiante na possibilidade de construção de um país melhor, com uma participação mais efetiva e consequente de todos e com um futuro menos incerto a nos espreitar. Penso que a educação política permitiria, inclusive, a despeito do ressentimento, do “justiçamento” e da polaridade que temos visto, hoje, no Brasil, que conquistas recentes fossem mantidas e garantidas como passos importantes na construção de um país que se pretende mais democrático e republicano, com olhos e práticas voltados de fato para toda a população.
Turim, Piemonte, 22/03/2016.