Um amigo argentino me contou certa vez que em 25 de março de 1976, ao sair de casa pela manhã, viu o ônibus que o levava todos os dias à escola, deixando a parada em que ele deveria tê-lo tomado. Ele conhecia o percurso da condução e sabia que ela passaria por uma estação a poucas quadras dali, de maneira que valia a pena a corrida por entre as ruas internas do bairro, para alcançá-la a ponto de tomar o ônibus e não perder a primeira aula do dia.
Em desabalada carreira, o menino de 14 anos reagiu rápido, mas a umas poucas dezenas de metros do destino, em frente a um prédio público, foi detido por um soldado do Exército Argentino, atirado ao chão para logo ver-se com um fuzil apontado para si. Ele não sabia, mas no dia anterior houvera um golpe de estado e uma junta militar assumira o poder em lugar de Maria Estela Martínez de Perón, a Isabelita, vice-presidente que assumira a cadeira presidencial quase dois anos antes, quando o mandatário eleito, seu marido Juan Domingos Perón, morrera. Desfeito o mal-entendido, meu amigo foi mandado de volta para casa, não haveria aulas naquele dia. A manhã começava, mas a longa noite que cobriu a República Argentina demoraria ainda sete anos para dissipar-se.
A ditadura mais recente no país vizinho acabou apenas em 1983, com a eleição de Raúl Alfonsín, do Partido Radical, para Presidente da República. A retomada democrática não foi fácil, tampouco tranquila. Crises políticas diversas, ameaças de golpe, condenação de criminosos que atuaram no regime e sua posterior anulação, fantasias econômicas seguidas de desastres que desvalorizavam brutalmente a moeda (às vezes mudando o seu nome), tudo isso e mais aconteceu na Argentina nos anos que seguiram à ditadura.
Mas é admirável como os Hermanos lidam com o passado recente em que houve perseguição, tortura, assassinato, censura de todo tipo. Não há esquecimento, os milhares de desaparecidos são lembrados. Quem caminha por Buenos Aires pode ver no chão pequenas placas metálicas que denunciam o lugar e a data em que houve o sequestro e o desaparecimento de alguém. Nas Universidades há murais públicos com os nomes de professores e estudantes assassinados pelos ditadores. Estes, por sua vez, foram condenados, e o primeiro deles, Jorge Rafael Videla, morreu na prisão.
No Brasil, no mesmo março, mas no dia 31 (ou teria sido em 1º de abril?), também aconteceu um golpe que depôs o presidente em exercício. Foi doze anos antes do argentino e durou mais de duas décadas, terminando com a saída bem negociada dos militares do Planalto e da Esplanada dos Ministérios. Aqui também houve sequestro, tortura e desaparecimento. Diferentemente do que acontece na Argentina, entre nós é grande a dificuldade em lidar com o passado.
Nenhum membro do aparelho repressivo clandestino do Estado brasileiro foi preso (quase nenhum recebeu condenação) e a Lei de Anistia, em 1979, na prática só valeu para uma das partes, já que os que enfrentaram os governos ditatoriais pagaram com a própria vida, anos de cárcere, direitos políticos cassados, demissão, banimento do país, exílio, ou tiveram que passar boa parte daqueles tempos clandestinamente. Ou seja, sem avaliar aqui as ações guerrilheiras, tema que demanda atenção específica – mas sem questionar o direito de lutar contra um governo ditatorial –, o fato é que apenas um lado foi julgado (quando muito), condenado (sempre) e cumpriu pena (que foi em muitos casos a execução sumária ou morte como epílogo da tortura).
Afora isso, os mesmo que acusam seus opositores de revanchismo são os que compulsivamente querem reescrever a história como se nela não houvesse golpe, censura, violação dos direitos humanos por parte de militares e seus apoiadores. São os que insistem em celebrar o 31 de março como dia da revolução de 1964, aquela que teria salvado o Brasil de se tornar um país comunista (sob os auspícios do estancieiro trabalhista João Goulart!).
Os militares brasileiros insistem em considerar o golpe como um ato de garantia da democracia, o que é tão inaceitável quanto sua atuação como políticos. É que com armas na mão a política se torna impossível, assim como acontece quando há ameaça de que elas possam ser empregadas. Ao contrário disso, o Exército poderia olhar para si mesmo e admitir os resultados da Comissão Nacional da Verdade, assumindo seus erros e rumando cada vez mais para ser, de fato, uma instituição de Estado. O país precisa de Forças Armadas bem preparadas e cumprindo funções republicanas.
24 de março é feriado na Argentina, é o Dia da Memória. Não há celebração, mas esforço coletivo em lembrar, atualizando o passado não por qualquer impulso revanchista, mórbido ou pessimista – como às vezes se diz de quem se recusa a esquecer –, mas porque é preciso fazer justiça aos mortos, ou os vivos ficam sem o direito de ter paz. Sorriso indiferente à barbárie é, no melhor dos casos, de um bárbaro cinismo, no pior deles, de puro júbilo perverso. Oxalá tenhamos também, algum dia, o nosso dia de rememorar, sem qualquer orgulho, para poder dizer, de forma firme e tranquila: Nunca mais.
Sob o signo da morte, março de 2021.
Imagem de destaque: Flickr / Circuito Fora do Eixo