A FELICIDADE É UM TECIDO
Berta Young tem trinta anos. Poderia chamar-se Ana ou Teresa. É uma mulher e tem momentos como esse: correr em vez de andar, tentar pegar o ar entre os dedos e soprá-lo para longe, dançar, dizer bom dia a todo mundo, abraçar o próprio corpo e ficar rindo, simplesmente rindo, à espera do motivo. Ao dobrar a rua em que mora, foi invadida por uma sensação de felicidade – absoluta felicidade! – como se tivesse de repente engolido um rútilo pedaço deste sol da tardinha e ele estivesse a arder em seu peito, a espalhar um chuveiro de minúsculas faíscas em cada partícula do seu desejoso corpo.
Absoluta felicidade.
Assim Berta passou o dia; à noite recebeu amigos, amigas. Mas viu. Viu. Aquele por quem seu corpo tanto fremira abraçou, beijou e disse palavras de amor a outra que não ela, ela a quem ele já não dizia há muito tempo.
A pereira estava linda, lhe dissera a outra ao se despedir.
– Como é linda a tua pereira… pereira…pereira.
Berta correu para as janelas.
– Oh, que será que vai acontecer agora? – gritou.
Mas a pereira estava tão linda como sempre, e como sempre florida e tranquila (1).
No momento do conto em que Berta descobre a traição, um amigo idiota vai ler para ela um verso do poema de Bilks,
« Pourquoi faut-il toujours Soupe aux tomates? Soupe de tomates est si terriblement éternelle. »
Uma simples e tola sopa de tomate seria sempre eterna… Mas a felicidade extrema de Berta sequer alçou voo…
Clarice Lispector nos diz daquela coisa clandestina que era a felicidade, no conto A Felicidade Clandestina (2). A menina, que foi adorava ler, queria livros para ler. A amiga tinha livros, pois tinha um pai dono de livraria e prometeu que emprestaria “o” livro, um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar com ele, comendo-o, dormindo-o. No entanto, o plano da filha do dono da livraria não era emprestar o livro, era negar o livro, negacear o livro, todos os dias, com a promessa de no dia seguinte o empréstimo realizar-se. Chantagem, jogos de poder. Até que a mãe boa entendeu. E dissolveu o bullyng: o livro poderia ficar emprestado pelo tempo que quisesse. É tudo que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Chegando a casa não começou a lê-lo.
Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achavao, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade iria sempre ser clandestina para mim.
A nossa felicidade nunca é extrema e é clandestina, como se fosse roubada. Nossa, de cada um dos brasileiros que somos todos nós… Mas cantamos a felicidade!
Vinicius de Morais e Tom Jobim cantaram que a tristeza não tem fim mas a felicidade tem fim: cantaram que a felicidade não tem consistência. Cantaram que a felicidade é leve, leve como a pluma e como tal tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar. Se há felicidade é preciso que haja sustentação, mesmo que seja o vento, o incapturável vento (3)… Sustentar a felicidade? Ou ela vai embora, inexoravelmente, queiramos ou não? Em outra canção, a felicidade vai mesmo embora e o que resta dela, o que fica, é a saudade (4)… A saudade – essa palavra que só há em português – é o resto da felicidade, é a cicatriz da felicidade (5)…
Mas também podemos cantar a surpresa da felicidade (6), pois, – atenção! – a felicidade não manda avisar, chega de noite ou de dia e se a saudade é o resto da felicidade, que venha a alegria, companheira da felicidade! Quem sabe disso é a Mafalda (7).
* Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais. Este texto foi escrito em 2010 para integrar um livro sobre a Felicidade em homenagem à professora da Universidade de Genebra, minha amiga Mireille Cifali.
(1)MANSFIELD, Katherine. Felicidade. In.: FELICIDADE. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s.d. Tradução de Érico Veríssimo. P.1. (Katherine Mansfield, “Bliss”, 1920) Em inglês, o título do livro em que está esse conto é Bliss, um substantivo, 1. A state of extreme happiness. Felicity é apenas state of well-being characterized by emotions ranging from contentment to intense joy.
Em francês, o título do conto foi traduzido por Félicité (nom féminin) Bonheur extrême.
Em português o título é Felicidade, e felicidade é qualidade ou estado de feliz; estado de uma consciência plenamente satisfeita; satisfação, contentamento, bem-estar.
(2) LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In:Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. (Ucrânia 1920; Rio de Janeiro 1977.)
(3) Tristeza não tem fim/Felicidade sim/A felicidade é como a pluma/Que o vento vai levando pelo ar/Voa tão leve/Mas tem a vida breve/Precisa que haja vento sem parar (…) A FELICIDADE Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim.
http://www.youtube.com/watch?v=Ka44wBAypuA
http://www.dailymotion.com/video/x3c8aj_orfeu-negro-vinicius-de-moraes-a-fe
http://www.esnips.com/doc/b7180726-e845-4ef7-9bfe-a4fdce59f145
(4) Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito/Inda mora e é por isso que eu gosto/Lá de fora, onde sei que a falsidade não vigora. (Lupicínio Rodrigues. 1952)
http://www.youtube.com/watch?v=48coIPWnD64
http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/44724/
(5) Felicidade! Felicidade!/Minha amizade foi-se embora com você/Se ela vier e te trouxer/Que bom, felicidade, que vai ser!//
Que bom, felicidade, que vai ser!/Trago no peito/O sinal duma saudade/Cicatriz de uma amizade/Que tão cedo vi morrer (Noel Rosa e René Bitencourt – 1932)
http://letras.terra.com.br/noel-rosa-musicas/1280545/
(6) A felicidade não manda avisar/Quando vai chegar a ninguém, a ninguém/Pode vir de noite ou de dia/É sempre um motivo de alegria. Jogada pelo mundo. Ary Barroso 1960. Cantada por Gal Costa, a canção pode ser encontrada – “Jogada pelo mundo” – no https://www.youtube.com/watch?v=Z1HrF0PAT_U
(7)