Professora, por escolha, por opção

Juliana Melo

E, então, estou eu aqui, com a “árdua” tarefa de escrever sobre a Magda. “Árdua” porque, em se tratando dela, há muito que dizer e não somente a respeito daquilo que encontramos nos livros; nos inumeráveis artigos que lemos e escrevemos inspiradas, inspirados na pesquisadora; nas dissertações e teses a que nos entregamos, mais uma vez, acompanhando e reconhecendo o valor de seu trabalho, também como professora, por escolha, por opção, diria ela; como educadora, que nos formou, que nos forma por meia da letra e da voz, dos olhos que brilham, que vibram. “Árdua” tarefa, porque, ao ser convidada para escrever estas linhas sobre Magda Soares – convite que aceitei honrada e com gosto –, nossa!, não tenho como escapar de um discurso que, “apesar de” polifônico e dialógico, se faz autobiográfico.

Vou recomeçar, portanto, avisando aos leitores, às leitoras, que farei um passeio afetivo, para contar da Madrinha que eu não sabia Magda Soares, até alguns anos atrás, ou melhor dizendo, no começo do meu Curso de Letras, na UFMG, iniciado em 2001. Eu vinha de uma família pobre, tinha 19 anos, tempo igual de convivência com a “Didinha”, carinhosamente assim chamada por mim. O que eu sabia é que “a Magda”, como minha mãe dizia, tinha prometido me batizar, caso eu fosse real e não um fruto da imaginação “da Lourdinha”, que tanto desejava ter uma filha, ou mais um filho. Na época, minha mãe chegava aos 36 anos de idade, mas já trabalhava com a Magda, há um bom tempo; há, aproximadamente, 16 anos, como manicure da família.

Nasci em 1981 e, com o nascimento de fato da menina, veio o batismo. Sorte a minha, pois cresci, frequentando a casa da “Dinda”, indo a seu escritório, vendo-a ler e sempre a trabalhar na máquina de escrever, já que computador, embora se pareça velho conhecido nosso, é “parafernália” eletrônica ainda bem jovem. Muito caminhei entre suas prateleiras de muitos livros, ganhei outros tantos de presente; foram histórias E estórias, lidas, vividas, graças à fantasia oportunizada por aqueles livros que me vinham nas datas especiais, nos aniversários, mas também em dias comuns. Eles chegavam à minha casa, e, quando não era assim, vários, eu li, em uma poltrona vermelha de seu escritório…

Escrevo e vejo minha Madrinha por perto, inclusive, visitando minha casa simples no Bairro Gorduras da minha época de menina, tomando o “chafé” de minha mãe. Voltando no tempo, me lembro dela, em minhas festas de escola, na formatura da 4ª série, me preparando para as provas do Coltec e do Cefet. Tendo optado pela Escola Técnica do Bairro Nova Suíça, “Dinda” continuou seu apoio, fazendo como já fazia desde o início de minha escolarização: comprando todo o material escolar, inclusive, os livros didáticos, que, naquela época, não recebíamos gratuitamente, como ocorre hoje em dia em muitas de nossas escolas públicas. Tudo comprado por ela, inclusive a escrivaninha, que, até meus 15 anos, não tinha em casa. Móvel e lugar tão importante para estudar, ler, escrever, encontrar com letras, ideias, sonhos… Como a escrivaninha, presente da “Didinha”, os cursos da vida, incluindo o de Inglês.

O hábito de reconhecê-la na relação de afeto, amizade, como Madrinha, de quem eu “apenas” sabia que estudava muito e “trabalhava na Faculdade” – de novo, como minha mãe dizia –, me suscita certo “estranhamento”, ainda hoje, ao tratá-la como Magda Soares. Explico o porquê disso. Só a descobri assim, com nome e sobrenome de autora, no Curso de Letras, quando era monitora-professora do PROEF-1, no Programa de Educação de Jovens e Adultos da Universidade.

Antes de prosseguir, vale dizer que estudei Edificações no Cefet, nos anos 1990. Ao terminar o curso técnico e anunciar minha opção por Letras, a “Didinha” chegou a mencionar que o natural seria eu escolher Engenharia ou Arquitetura. Mas não teve jeito. Era Letras mesmo. Eu gostava de ler e desejava ser professora da Escola Pública, porque, na minha cabeça, afinal de contas, era pela escola que a minha realidade se modificava, que minha vida melhorava… Assim, compartilhando experiência, construindo conhecimento, indignando-se com as injustiças, transformando indignação em ação, outras realidades poderiam se modificar, aprendizado que me veio, como se fosse natural e espontâneo, na convivência de longa data, frequente, com a Madrinha. Ela esteve sempre junto, presente, apoiando-me e partilhando as emoções, da conclusão do meu Curso de Letras à defesa de minha tese de Doutorado.

E foi assim, por estas ironias do destino, caminhando entre as prateleiras de livros – dessa vez, não mais aquelas do escritório de minha Madrinha –, que a descobri Magda Soares, em 2002. Eu procurava livros que me ajudassem a pensar a alfabetização e o letramento, buscava também livros didáticos. Foi então que encontrei vários de uma mesma autora, organizados em prateleiras específicas da Biblioteca da Faculdade de Educação da UFMG. Folheava as páginas dos livros encadernados com arame e reconhecia seu nome, sua trajetória, inclusive, naquela Faculdade, onde eu me formava. Eu, na biblioteca, conhecia a pesquisadora. Escritora de livros didáticos de Português? Estudiosa dos usos sociais da leitura e da escrita?

A partir daí, era um “susto” atrás de outro, no sentido positivo do termo e das vivências, uma vez que, desejando ser professora e educadora (também), pesquisando, lendo, a cada dia, me encontrava com as práticas e os escritos de Magda, sobre alfabetização, letramento, ensino de Português; sobre a linguagem e a escola, numa perspectiva social. A placa com seu nome, informando da fundação do Ceale, nunca mais me passou despercebida. As referências estavam em todas as partes: na FaE, nos programas das disciplinas que eu cursava, nas aulas, nas falas de professoras e professores que tive; novamente nos livros; em artigos, dissertações e teses. Demorei muito tempo para acreditar em tudo aquilo, pois a “Didinha” nunca havia me falado de seu trabalho, nem mesmo na Faculdade de Educação, na UFMG; de seus (próprios) livros, do que escreveu; de seus orientandos, de suas orientandas, agora, meus professores, meus orientadores.

Depois disso, não saí mais da Universidade. Graduação, Mestrado, Doutorado. Caminhos trilhados com seu apoio, com suas palavras sábias, me ensinando, inclusive como professora que é, como educadora, que o momento de colocar a mão na borda da piscina chegaria. Com Magda, aprendi o poder da palavra (escrita), do compromisso da professora-pesquisadora com a justiça social. Com a Madrinha, descobri a paixão e a liberdade que nos acontece nos encontros com os livros; conheci, sobretudo, o poder das ações que transformam o mundo, a vida das pessoas.

 

Sobre a autora
Professora de Português do Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional da Universidade Federal de Minas Gerais (CP/UFMG).


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