Cinturão reacionário sufoca crianças e jovens

Alexandre Fernandez Vaz

Houve algo de bom no lamentável episódio do projeto de lei (PL) 1904/2024, apresentado pelo igualmente lamentável deputado federal Sóstenes Cavalcante, do Partido Liberal (o mesmo de Jair Messias Bolsonaro, que dispensa adjetivos): a imediata e maciça reação contra ele, que mobilizou, em ruas e redes, um número muito grande de pessoas, em sua maioria mulheres. Não era para menos, afinal, tratava-se de coisa macabra a decisão de votar em regime de urgência um PL que equipara a interrupção voluntária da gravidez depois da 22ª semana de gestão ao crime de homicídio, mesmo nos casos em que a lei hoje a permite. O despautério chega ao ponto de gerar a possibilidade de que, em caso de ser vítima de estupro aquela que sofrera o aborto, ela fosse condenada ao dobro de anos de reclusão em relação ao que perpetrara o crime considerado pela legislação nacional como hediondo.  

O PL é mais uma mostra da crueldade patriarcal contra as mulheres, impedidas de governar o próprio corpo e submetidas a verdadeiras maratonas para encontrar condições de realizar abortos, mesmo em situações legais.  É uma violência contra a sociedade como um todo. O atraso entre nós é tão grande que nem sequer conseguimos pautar o debate sobre a ampliação de direitos, ao contrário do que acontece na Argentina e no Uruguai, que mesmo com governos conservadores e até reacionários, não vê as grandes conquistas nesse campo serem tão ameaçadas como aqui, onde tentamos meramente barrar os retrocessos. O ataque é destinado a todas, e as pertencentes aos grupos socialmente vulneráveis estão mais expostas. Entre eles, e com o atravessamento de classe se fazendo muito presente, estão jovens e crianças, seja porque uma educação sexual em termos iluministas lhes é negada (restando-lhes, portanto, a exposição a todo tipo de perversão da indústria cultural, incluindo a pornografia), seja porque estão desprotegidas frente a agressores que no mais das vezes são de seu círculo familiar ou social próximo (restando-lhes, portanto, o medo, a dor e o trauma, além de muitas vezes uma gravidez precoce e indesejada, além do aborto criminalizado e em condições arriscadas).

Não é só em sua segurança e em sua saúde que a infância e a juventude vêm sendo atacadas pela destruição das estruturas e relações republicanas. Também em sala de aula a coisa não vai bem e são diversas as situações nas quais o obscurantismo ganha terreno, não apenas no Brasil. Recentemente a Louisiana, estado confederado no Sul dos Estados Unidos, decidiu que os dez mandamentos do Novo Testamento deverão estar afixados nas salas de aula, ato que foi elogiado por Donald Trump, virtual candidato a presidente do país, que aproveitou para conclamar os cristãos a votarem a seu favor no pleito de novembro próximo. Enquanto isso, na Europa a extrema-direita avança de forma consiste, revigorando agendas fascistas dos anos entreguerras, atacando imigrantes e se recusando a elaborar e reparar o passado colonialista. Na França, onde as palavras liberdade, igualdade e fraternidade estão no pórtico das escolas, há quem exorte, sem constrangimento, a urgência de “dar um futuro para as crianças brancas”.

Abaixo da Linha do Equador as notícias tampouco são das melhores. Se em Minas Gerais um livro infantil de Ziraldo é censurado, em São Paulo policiais militares da reserva remunerada serão escalados para ministrar aulas sobre ética e política, aparentemente em formato semelhante à velha disciplina Educação Moral e Cívica, mas com vistas a superá-la e avançar para o modelo de escolas cívico-militares. Ou seja, durante a ditadura havia muitos momentos em que o militarismo e a patriotada tomavam o cotidiano escolar, mas agora a pretensão, que é formatar a escolarização à semelhança subjetiva e objetiva da caserna, é ainda mais drástica. Não bastasse o violentíssimo aparato policial montado pelo governo Tarcísio de Freitas, que tem aterrorizado as periferias urbanas, o investimento na militarização da escola não para. 

Um pouco mais ao sul, nada de novo. Em Santa Catarina, uma professora foi afastada do trabalho por “militância política”. Desta vez é Carolina Puerto, responsável pelo ensino de Filosofia em uma instituição estadual e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina (SINTE/SC). Seu grave erro? Atrever-se a levar a sério o trabalho de formar as novas gerações. É essa docente muito bem preparada em sua disciplina que vem enfrentando a fúria persecutória da extrema-direita, mas é toda a sociedade que está perdendo, porque nossa precária democracia vem sendo dilapidada. Ao encarnar os princípios e saberes que fazem com que a educação ainda seja uma experiência de resistência, a colega merece todo o respeito e ajuda-la na defesa contra a violência autoritária é mais do que justo e necessário. Entretanto, esse gesto transcende o caso individual, vez que busca assegurar que a escola siga cumprindo, mesmo a duras penas, seu papel, que os jovens que a frequentam tenham educação de qualidade, laica e crítica.  

Não é pouco o que está em jogo no movimento que, em organização tentacular, vai avançando e encurralando a todos nós, mas com a juventude em primeiro plano, ela cujo horizonte de expectativas, antes esperançoso, vai encolhendo: postos de trabalho outrora prometidos pelo capitalismo (claro que nunca de fato oferecidos) foram substituídos pela disputa fraticida no mercado sem regulação, sem direitos, e que paga pela quantidade de horas que um jovem se expõe no trânsito pilotando uma motocicleta; a utopia da formação crítica foi substituída pela velocidade e a fluidez das redes sociais; a relação generosa com o corpo, o próprio e o do outro, dá lugar à rigidez do fitness e à submissão moralista; o pensamento crítico se esvai em favor do obscurantismo fanático. 

A filósofa Hannah Arendt escreveu sobre a responsabilidade dos adultos em relação ao futuro do mundo. Sem tal encargo, dizia ela, melhor seria que não nos ocupássemos da educação das crianças e jovens. Levemo-la a sério e assumamos nosso encargo com as novas gerações, especialmente resistindo ao ataque maciço e sistemático contra o que ainda nos resta de um conjunto de ideais que remontam ao século XVIII: autodeterminação, democracia, liberdade, igualdade, universalidade de direitos, pluralidade, vida pública, felicidade, crítica.  Não se trata de retroceder no tempo, mas de recordar que há uma verdade naquela fundação moderna que precisa ser retomada porque aquilo contra o qual ela se colocou não para de vencer. O obscurantismo é o veneno na alma de todos, mas muito mais deletério, até mesmo mortal, para a juventude.

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