Para Karen Gil, que escolheu e foi escolhida pelos dois países.
Falta pouco para que se complete uma década e meia de minha primeira visita à cidade de Medellín, capital do departamento (estado) de Antioquia, Colômbia. Estive lá para um evento e desde então repeti a viagem muitas vezes, pois desenvolvi com colegas antioquenos uma sólida parceria intelectual. Anos antes, ainda muito jovem, eu já estivera no país, em breve passagem que se restringiu a pouco mais de vinte quatro horas em Bogotá, cidade para a qual retornaria mais duas vezes.
Da viagem de 2007, assim como das tantas que vieram depois, guardo as melhores recordações e a experiência de ter aprendido muito sobre a Colômbia, sobre o Brasil – sempre é bom ver o próprio país de fora dele –, sobre formas de existência.
Acolhedor, com forte tradição indígena, afro-americana e espanhola, e vida cultural e intelectual das mais interessantes, nosso vizinho amazônico é um lugar fascinante. No entanto, assim como acontece do lado de cá, sofre com a endêmica violência. A revista corporal e dos equipamentos para ingressar nos lugares públicos fechados, a placa na fachada do restaurante em Cali que dizia ser proibido entrar com armas de fogo, os seguranças privados com pistolas automáticas na Universidade Católica: minha impressão foi sempre a de um país em que o estopim estava por ser aceso.
Todos sabem da existência da guerra civil durante décadas, do narcotráfico, do terrorismo exercido por guerrilha, paramilitares e governo, dos esforços e fracassos dos acordos de paz. Tudo mais ou menos como estamos habituados, ainda que os personagens no Brasil se chamem coronéis e latifundiários com seus exércitos de jagunços, traficantes, bicheiros, milicianos e policiais corruptos.
Acostumar-se com a violência talvez seja um dos processos mais ambíguos e dolorosos pelos quais passamos. Por um lado, é um imperativo, ou como se poderia sobreviver, tal a ubiquidade do fenômeno?; por outro, é a pura expressão do horror que assim seja, e é impossível manter-se anestesiado frente a ela. Não, não dá para se acostumar com a violência, restando então suportar a indignação, o medo, o gosto amargo, a tensão do corpo, a alma que parece que vai morrendo a cada notícia que vem da Colômbia, onde os protestos têm sido reprimidos e, mais que isso, as pessoas estão sendo sistematicamente assassinadas.
As mesmíssimas sensações vão sendo sentidas com as informações sobre a chacina na comunidade carioca do Jacarezinho, aquela que várias autoridades classificaram como exitosa. Se o objetivo era empregar a pena de morte, prática extrajudicial corriqueira, então de fato estamos diante de inquestionável sucesso. Se é o estado de direito que vige (e para os periféricos não é), frente a nós está um vergonhoso fracasso: eram vinte e um mandados de prisão a cumprir, mas seis pessoas foram detidas e vinte e oito morreram. Resultado de “trabalho de inteligência”, disse o governador Cláudio Castro. Fico imaginando o que se nos destinaria se fosse obra da falta dela.
Assim como a democracia, a paz é exceção antes que regra. Não é fácil educar para a primeira, tampouco para a segunda. No fundo, a maioria de nós tem pouco ou nenhum apreço por ambas. Não fosse assim, seria outra nossa realidade de enfrentamento da pandemia e não haveria espaço para tanta demonstração de indiferença ou júbilo frente ao massacre no Rio de Janeiro.
A falta de espírito republicano se deixa ver, ademais, na obsessiva separação retórica entre cidadãos de bem (as camadas médias do asfalto) e bandidos (os moradores de comunidade).
Em 1999, João Moreira Salles e Katia Lund apresentaram o documentário Notícias de uma guerra particular, sobre a violência na cidade que se diz maravilhosa (Aliás, até quando os cariocas vão seguir com o ilusionismo de dizer que a cidade que habitam é maravilhosa?). Nele há um longo depoimento de Hélio Luz, Chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro entre 1995 e 1997, por meio do qual ficamos sabendo da função que o aparato policial cumpria: manter os pobres no seu devido lugar. Justiça e cumprimento da Lei? Não, o que os donos da cidade querem é proteção e vingança. Desde então as coisas parecem ter piorado, já que depois de cada ato bárbaro nem sequer há a preocupação em justificar o injustificável, mas a simples afirmação de que foi feito não apenas o necessário, como o desejável.
A violência é um dos pilares que formam a história do Brasil, país em que a escravidão era legal até anteontem e que ainda hoje (mais que ontem) é tolerada, em sua versão análoga, sem muitos problemas. A educação deve levar a sério esse fato e construir-se na contramão da ideia de que “a alegria é a prova dos nove”. Não proponho, claro, qualquer correção ao que Oswald de Andrade escreveu e a Tropicália atualizou, mas quero lembrar que utopia não é wishful thinking.
Políticas de extermínio, racismo, machismo, homofobia, transfobia, misoginia, exploração e preconceito de classe, mentalidade fascista, mandonismos e geral, a lista é interminável. Se todo documento de cultura é também de barbárie, e a educação não pode se furtar dessa contradição que também a constitui, então a barbárie como regra deve ser encarada em toda a sua extensão, mesmo, e principalmente, quando ela é encampada como medida legal e vem travestida de decisão democrática.
Que os amigos colombianos e nós brasileiros possamos sobreviver à própria estupidez.
Sob o signo da morte, maio de 2021.
Imagem de destaque: Marino Azevedo / Wikimedia – Forças de Segurança ocupam o Complexo de Manguinhos e do Jacarezinho, 2012.