Cleiton Donizete Corrêa Tereza
A catástrofe, esperada e anunciada com o governo Bolsonaro, tem se confirmado: desmonte de políticas públicas essenciais à população, com impactos diretos nas camadas mais espoliadas, ataques aos Direitos Humanos e ampliação do clima de tensão, desorganização da economia do país de forma perversa e irresponsável, enfim, a lista dos desastres propositalmente realizados é grande. E a desgraça ficou ainda mais explicita com a chegada da pandemia de COVID-19.
O governo genocida mostrou sua face mais macabra: discursos negacionistas, medidas tomadas para ampliar e agravar as consequências da pandemia, falta de consideração com o sofrimento do povo brasileiro e tentativas de centralização de poder, sinalizando a vontade de implantação de uma ditadura.
Diante dessa situação crescem as propostas de formação de uma Frente Ampla, envolvendo partidos com diferentes orientações e contando com o engajamento de várias lideranças políticas, para derrotar Bolsonaro, e todo o caos que ele representa, nas eleições presidenciais de 2022. Porém, esse unicórnio chamado Frente Ampla dificilmente irá se materializar e, mesmo que ocorra, quais seriam os possíveis benefícios e problemas para a educação? Como conciliações (tentativas de conciliações) e acordos políticos têm afetado a educação brasileira? O que podemos analisar de governos de coalizão, do impositivo presidencialismo brasileiro de coalizão, quanto à educação diante das relações capitalistas?
Com a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã – o que já sinaliza um grave problema, devido aos limites que, em geral, se entende a cidadania nos padrões da constituição liberal da Nova República, e que, mesmo assim, tem sido constantemente desfigurada – a educação foi afirmada como um direito a ser assegurado pelo Estado em parceria com as famílias e toda a sociedade.
Em 1996 foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96), tendo como principal objetivo balizar, em linhas gerais, o que estava previsto na Constituição Federal. Porém, é inegável que a partir de 2002, com a chegada do PT e de Lula ao governo federal, foi que muitas das reivindicações históricas para a educação brasileira foram efetivadas e ampliadas. Mas, foi também a partir desse período e de suas políticas que ficaram expressamente caracterizados os entraves derivados das conciliações políticas, que apesar de encaparem parte das demandas dos movimentos sociais e de setores universitários, continuaram profundamente atreladas aos interesses do capital, dos senhores do mercado, algo presente também na feitura da Constituição e na aprovação da LDB. Não havia como esperar o contrário; como o próprio Lula disse, em entrevista recente ao jornalista Reinaldo Azevedo, ele fez uma notória política de conciliação de classes, tendo como aliado o empresário mineiro José de Alencar, filiado ao Partido Liberal (PL) e ao Partido Republicano Brasileiro (PRB), enquanto exerceu a função de vice-presidente. Essa junção foi uma das mais emblemáticas expressões das articulações problemáticas que marcaram o lulopetismo. Não se concilia o irreconciliável.
Os interesses da burguesia e dos trabalhadores, com todas as nuances possíveis, são distintos e, em momentos de crise, que como disse a historiadora Emília Viotti da Costa, são momentos de verdade, os rompimentos acontecem rapidamente. Os capitalistas se movem das formas mais sorrateiras e agressivas para continuarem a manter suas posses e seus lucros. Mesmo a grosso modo, isso colabora para o entendimento do golpe de 2016, a eleição de Bolsonaro em 2018 e o crescimento do fascismo.
Se, por um lado, durante os anos de governo do PT (e todos os outros partidos que alugou para conseguir governar, fazendo uso de práticas de negociação e conchavos que historicamente criticava) houve colaboração para a construção de mais escolas e equipamentos públicos, expansão das vagas no ensino superior, implantação da política afirmativa de cotas, aumento dos investimentos em pesquisas, para dar alguns exemplos de acertos, por outro lado, houve atrelamento da educação ao neoliberalismo com a adoção de práticas produtivistas, quantitativas e ranqueamentos, estímulo ao ensino por habilidades e competências, recuos diante de discussões envolvendo gênero e diversidade, aumento da precarização do trabalho, inclusive o trabalho docente, e financiamento de corporações privadas da educação mercadologizada com cursos de qualidade discutível. O problema crucial foi que, o esforço realizado pelo lulopetismo quanto à educação não foi suficiente para produzir, em nível nacional, de forma sistêmica, uma educação que contribuísse efetivamente com a conscientização do povo brasileiro, para além da busca da satisfação de necessidades mais imediatas, por acesso aos bens de consumo e com criticidade às ideologias neoliberais.
Renato Janine Ribeiro, Ministro da Educação no governo encabeçado pelo PT, em 2015, por apenas seis meses, sendo substituído, devido a uma dança das cadeiras nos ministérios, uma velha e corrompida prática que visava acomodações em um momento de crise incontornável, fez uma análise lúcida, em seu artigo no livro Escola Pública: tempos difíceis, mas não impossíveis, que vale a pena recuperamos: “Um dos erros grandes foi não se ter construído uma consciência mais política disso tudo (programas públicos do período marcado pelo lulopetismo). (…) A convicção do mérito não é só dos mais ricos, está em todos os meios sociais. Muitas pessoas que têm sucesso o atribuem ao mérito próprio ou então a Deus. (…) Já a consciência do contato com o outro, do trabalho em conjunto ou em conjunto com o outro ou os outros, é algo que o Brasil não tem e cuidadosamente evita”. De tal forma que, ao fim e ao cabo, em grande medida, uma parte importante das iniciativas em termos de políticas públicas, também para a educação, fortaleceram o conservadorismo e as precarizações que, talvez, Lula, Dilma e o PT gostariam de combater.
É preciso aprender com a história. Se Bolsonaro, os militares, os milicianos, os religiosos aproveitadores, o empresariado descompromissado com a democracia, e seus fanáticos seguidores representam uma ameaça real à sociedade brasileira, podendo levar a uma realidade distópica, de violência ainda mais generalizada, corrupção oficializada, e a ignorância e a mentira como normas, esfacelando o já fragilizado tecido social, exigem a revisão de nossas proposições e práticas, o que justificaria a adesão a uma Frente Ampla. Precisamos compreender também que, sem um projeto radical de transformação e justiça para este país, a tendência é a continuidade dos problemas estruturais que levam às crises, à penúria e ao crescimento da extrema direita. Mais do que pensar em Frente Ampla, que dificilmente vai se constituir e se vier a acontecer será devido às necessidades sufocantes de um dado momento, é urgente radicalizar no combate às exclusões, às explorações, ao racismo, ao patriarcalismo, às violações de direitos e, para tanto, a educação brasileira precisa de mudanças que superem os limites do capitalismo neoliberal.
Essa construção precisa considerar as teorias e pesquisas desenvolvidas no campo da Educação, da Psicologia, das Ciências Sociais, do Direito, das Ciências Humanas como um todo, reconhecendo as muitas e valorosas experiências em território brasileiro em diálogo com outras realidades, combatendo com criticidade todas as formas restritivas de burocratização e ideologização conservadora. Isso consiste em uma educação radical junto aos trabalhadores, algo que uma Frente Ampla jamais conseguirá desenvolver, porque as conciliações desse tipo bloqueiam as transformações genuínas, que passam pela educação, com o argumento de combater o adversário momentâneo, que poderá retornar ainda mais forte. O bolsonarismo deve ter vida longa, se as condições elementares que possibilitaram seu surgimento e expansão permanecerem inalteradas.
Para saber mais:
BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.
KRAWCZYK, Nora (org). Escola pública: tempos difíceis, mas não impossíveis. Campinas: FE/UNICAMP; Uberlândia, MG: Navegando, 2018.