Vai acelerar o Juiz: a EJA prisional e o tempo

Pedro Henrique Silva (Biolê)

Pensando sobre o meu tempo como professor em espaços de privação de liberdade, me ocorre algumas indagações: o que pude aprender com essas pessoas? Como fui atravessado pelo modo de ver a vida que eles /as me apresentaram? Tenho pensado que das coisas que mais ficaram para mim, hoje já não mais trabalhando na prisão, é a relação com o tempo, com a espera, com a vagareza. Não que atualmente seja menos ansioso, aliás continuo tendo crises regularmente, continuo, aqui ali, dando cabeçadas na trave por querer que as coisas aconteçam rápido.

No entanto, vi em algumas daquelas pessoas uma relação com tempo diferente, aqui não quero cair no erro de romantizar esses sujeitos, mas é que para alguns o fato de estar em situação de encarceramento, a lentidão da justiça (que faz com que os processos se arrastem anos, não raro por um tempo maior do que a pena recebida, ou mesmo culminando na absolvição do réu) obrigava a desacelerar a vida, quase como se consciente da situação não pudesse fazer nada a não ser esperar.

Meus primeiros dias naquele espaço foram de adaptação, ainda me pegava apressado para “dar conta do conteúdo”, coisas que são esperadas de nós, professores, lembro-me que em uma aula enquanto os educandos realizam o exercício senti-me impaciente pela demora, queria que fossem mais ágeis. Externei meu descontentamento com um:

– Oh gente, acelera aí, né?

Todos ficaram em silêncio e parados, apenas um educando largou o lápis levantou a cabeça e disse:

– É pra acelerar?

Sentindo minha autoridade questionada mantive-me firme:

– É pra acelerar sim!

Todos permaneceram em silêncio olhando para nós, no entanto só percebi a tensão do ambiente quando o educando alterou a voz e perguntou mais uma vez:

– É pra acelerar?

Como quem não quer perder a aposta repito

– É sim!

Sou seguido mais uma vez dessa indagação, agora com o educando já visivelmente alterado

É PRA ACELERAR, PROFESSOR?

Já sem a mesma confiança de antes soltei um titubeante e medroso:

– É.

 Nisso, ele jogou o lápis e borracha sobre a mesa, fechou o caderno com firmeza e levantou-se com violência da cadeira dizendo:

– Me acelerar? Vai acelerar o Juiz!

Com o passar dos encontros fui entendendo esta outra temporalidade da educação nas prisões, consegui entender e respeitar o tempo dos educandos e educandas, passei a perceber que educar é muito mais sobre mobilizar afetos do que transmitir conteúdos com velocidade. Lembro-me das vagarezas, das ocasiões que não tinha o que fazer se não parar e esperar, por exemplo em momentos de confusão no pátio em que toda a turma se postava atenta para presenciar o acontecido, ou em momentos mais sutis e alegres como quando algum passarinho desavisado e vadio entrava e sobrevoava a cela-de-aula seguidos de todos os olhares desejosos de liberdade, ou ainda nos momentos de comemoração do alvará de um dos irmãos.

De certa maneira isso mudou o modo como sou-estou no mundo, me fez um educador mais atento aos múltiplos tempos do(a)s educando(a)s que leciono. Recordo que já no segundo ano como educador na unidade voltei-me para o educando e perguntei se lembrava do acontecido:

– Claro, lembro sim, professor!

– Rapaz, vou te dizer: você me assustou naquele dia!

(Rimos juntos)

A resposta que se seguiu para mim é a síntese dessa perspectiva acerca do tempo:

– Oh professor, que isso! Mas, não gosto que me acelera. Pressa só pra ir embora.

Sobre o autor
Professor de literatura na rede particular de ensino, possui experiência na Educação de Jovens e Adultos (EJA) em contexto de privação de liberdade. É doutorando em Linguística Aplicada pela FALE/UFMG, mestre em Educação e Docência pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), bem como graduado em Letras/Licenciatura em Língua Portuguesa. É, também, iniciado nas tradições do candomblé de Angola na comunidade-terreiro Casa de Cultura Lodé Apará.


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