Marcus Vinicius Corrêa Carvalho
As universidades brasileiras, sendo indissociáveis da história das disputas que forjam o espaço público no Brasil, devem, ainda, ser consideradas, para além dessas disputas de livre opinião, no âmbito das tensões que a constituem como coisa pública. Urge, para tanto, considerar que as universidades brasileiras ao serem instituídas pelas disputas do espaço público, restringem também o direito ao acesso amplo de grande parte da sociedade à definição política, à produção e à fruição de saberes da cultura letrada. Como coisa pública as universidades têm restringido o acesso ao que se produz como cultura letrada sistemática e rigorosa, explicitando a discrepância entre o direito ao acesso a essa cultura fruto da livre opinião e as restrições que fazem dela um privilégio social, histórica e politicamente construído na refrega das tensões entre os diferentes projetos de educação para a sociedade brasileira.
Se essa proposição faz sentido, põe-se em jogo o problema da violência porque a distinção entre direção das decisões e execução de tarefas no intramuros universitário recrudesce a limitação do acesso à cultura letrada, o que na conjuntura moderna promove a sujeição, a exclusão e a precarização da cidadania ao desfavorecer a intervenção no espaço público. Sob o mesmo ponto de vista, seria possível pensar que professores e pesquisadores produzem interações violentas ao operar na relação pedagógica tomando-a como posse imanente e inexorável de saber, ou, ao produzir investigações voltadas para a história dos vencedores. Caberia, isto sim, reconhecer a assimetria da relação entre professor e aluno, promovendo o diálogo dos estudantes não com os professores e com os pesquisadores, porém com o pensamento e com a práxis cultural inscrita nas obras. O lugar do saber sendo considerado vazio e, por isso passível da aspiração de todos, não pertence a ninguém, estando franqueado ao encontro que permite que o diálogo com o saber não seja o ponto de partida, mas o ponto de chegada. Admitir-se-ia, então, o lugar simbólico ocupado pelo professor, tão vazio quanto imaginário, e, portanto, sempre pronto a ter novos ocupantes. O saber poderia, não sendo restrito aos interesses privados, ser ouvido e visto por todos, tendo a maior difusão possível, caracterizando o inter-est público.
Uma vez que a universidade trata com a construção coletiva dos saberes e sua história, divergências de pontos de vista e disputas de ideias deveriam ser percebidas como parte
da matéria que a constitui. O caráter aberto e público da universidade moderna implica, como fator instituinte, que o saber, o conhecimento e a ciência não são privilégio de interesses privados ou de corporações de ofício, sendo antes realizado por todos. Obras de pensamento e saber, traduzidas em conhecimento e ciência, implicam em vastidão e importância amplas e profundas o suficiente para invalidar a possibilidade de serem restritas à operação de um só ou de poucos. A universidade como catalizadora, difusora e irradiadora de conhecimentos não poderia deixar de estar aberta à transformação da própria universidade, apontando para seu caráter de coisa pública.
O aspecto nefasto e sombrio da universidade na realização de sua face científica emerge quando sua indissociabilidade da face política não é admitida e, explicitamente, pública. A inserção social da universidade na reprodução de sistemas econômicos e políticos por meio das pesquisas e das intervenções intelectuais que articulam de forma tácita, implícita e, por vezes, obscuras, modalidades de subvenção e de financiamento de pesquisas de interesse particularizado, privatista e mercantil, não deixam de expressar a face autoritária, violenta e excludente da sociedade brasileira.
Se a universidade não trabalha seus próprios conflitos, ela admite a possibilidade de separar conhecimento e poder, estabelecendo uma clivagem temerária entre condições de realização de pesquisas e de formação, por um lado, e, intervenção política democrática, por outro. O amesquinhamento de suas implicações públicas alija seu caráter de coisa pública, comprometendo a definição de suas prioridades na formação e na pesquisa. Essa dinâmica reverbera na precariedade da profissionalização e da qualificação oferecidas pela universidade, bem como nos equívocos de avaliação, obliterando: sua orientação política capaz de quebrar privilégios e inoperância; seu saber sobre ela própria capaz de, ao entender sua própria história, projetar sua inserção social e seu futuro; e, ainda, sua prestação de contas aos cidadãos que a sustentam. Incapaz de definir seus próprios indicadores de avaliação, a universidade propõe-se à produção de homogeneidade, considerando a pluralidade e heterogeneidade como obstáculos, estimulando clientlelismo, corporativismo e burocracia. Sem projeto nacional, a universidade não se pensa, nem pensa e se articula aos ensinos básico e fundamental.
* Continuação do texto elaborado para a mesa redonda de mesmo nome realizada no Seminário “Educação no espaço público: a comunicação pública da pesquisa em educação no Brasil”, FaE-UFMG.
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