Um médico alagoano e suas histórias de um Brasil independente

Edgleide de Oliveira Clemente da Silva¹

É fogo! Às 5 horas da madrugada ocorria um incêndio de grande proporção na casa em que residia o médico Alexandre José de Mello Moraes. O fogo apareceu no sótão e ganhou intensidade pelos demais cômodos da residência, sendo descoberto por um vizinho. Arderam alguns dos seus preciosos manuscritos. Mas esse incidente não o impediu de realizar algumas futuras e incontáveis doações para as diferentes bibliotecas das províncias de Alagoas, Bahia e Santa Catarina.

Tratava-se de um homem das ciências e da vida pública, colecionador voraz de livros, fontes e documentos, escritor de uma História do Brasil peculiar e crítico das narrativas oficiais da Independência brasileira que nos provoca a refletir acerca das díspares formas de fazer história, produzir memórias e inventar passados.

Clinicou durante alguns anos em Salvador, cidade onde se formou doutor, tornando-se um dos maiores propagadores da medicina homeopática. De sapato de veludo e colete da mesma fazenda, à médico dos pobres, assim, passou a ser conhecido, à medida em que clinicava. Mas seus interesses eram outros – a história política e social do Brasil.

Essas questões eram imprescindíveis na construção de um projeto de nação civilizada. E nada melhor que a escrita literária para validar esses vislumbres. Era ela menos burocrática e hostil que a política, por onde foi eleito deputado geral pela sua província natal, Alagoas.

A busca desenfreada pelas fontes, resultou em produções que mais pareciam verdadeiros tesouros à espera de um garimpeiro. Divulgava-se, por exemplo, que Mello Moraes havia deixado, entre os seus papéis, a carta de liberdade, passada ao Brasil por Portugal, mediante alguns cruzados (Revista illustrada, 1882). Era ele “propheta do passado”, o “archeologo da poeira” que dos arquivos extraia os mais preciosos documentos que constituíram parte da América desde os primeiros dias de sua descoberta (Revista da Exposição Anthropologica Brazileira, 1882).

Julgou! Para ele, o que se tinha produzido até então sobre a história pátria, nada mais era que inúmeros equívocos e crenças populares. Faltava provas, verdades, como se houvesse. Em relação ao que já havia se consagrado sobre a Independência e a eleição de Pedro I e os Andradas como heróis, lendas ou semideuses, Mello Moraes buscou amarfanhar. Elegeu outros protagonistas e desconstruiu os anteriores.

Ao lado de nomes como o de José Bonifácio, muitos concorreram à lista nominal de patriarcas da Independência, brasileiros e portugueses, mas o escolhido foi o padre José Maria Brayner, sobre o qual Moraes escreveu um artigo necrológico publicado no periódico, O medico do povo, considerando-o um dos bravos patriotas que brandiram a espada pela Independência do Brasil. A data 7 de setembro também era uma farsa para ele. Constituía-se, numa celebração vergonhosa, que em nada representava a Independência. O festejo cívico não passava de um carnaval, a contar com algumas bandeiras desfraldadas para encher os olhos dos participantes e alguma iluminação nas praças, evidenciando um descontentamento patriótico (Corsario, 1881).

Mello Moraes insurgiu contra este conjunto de “verdades” e instaurou outras, como a da compra da Independência por dous milhões de libras sterlinas, parte do subtítulo da sua obra A Independencia e o Imperio do Brazil (1877). Um livro polêmico, que denunciava a emancipação como um negócio e os erros do imperador e dos ilustres paulistas, prestigiados por seus discursos e escritos.

Os símbolos desmoronavam. Não era coincidência que as manifestações nas cidades ocorriam em espaços, como ruas e praças, que representavam a história de luta e resistência dos saudosos pela liberdade. Marcada por um discurso e simbolismo, nas suas declarações, leis, lutas, manifestos, slogans e imagens nítidas e evocativas, a Independência, de modo algum, deveria se limitar à glorificação dos partidários da separação.

Se a Independência do Brasil foi uma mentira política comprada pelos brasileiros à coroa portuguesa por 2 milhões de libras esterlinas e representada por sujeitos que tinham como interesse enriquecer e dominar o país ao invés de servi-lo, como afirmou Moraes, não era justo que somente alguns poucos homens fossem alcunhados de “anjos tutelares” de tal empreendimento. Nas suas narrativas históricas, portanto, o 7 de setembro, edificado sob muitas mãos, não mais representaria os sucessos civis e políticos de uns, mas uma determinada liberdade de muitos. 

 

1Doutora em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação – ProPEd da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e integrante do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação NEPHE/UERJ.


Imagem de destaque: Livro A Independencia e o Imperio do Brazil (1877)” Biblioteca Digital do Senado do Brasil.

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