Herbert Glauco de Souza
O local é um dos maiores cinemas da França do início do século XX e um dos mais importantes da Europa – o Studio 25. A algazarra e a correria que se ouvia e via no interior do cinema poderia indicar um atentado terrorista ou uma dessas pessoas que invadem locais públicos nos nossos dias com metralhadoras e atiram em todo mundo.
Mas não, o que acontecia no interior daquele cinema em 1930 não era um atentado terrorista ou algo do gênero. Ali estava acontecendo uma exibição de L’AGE D’OR, obra-prima de Luis Buñuel e Salvador Dalí, que indignara tanto o público que a assistia a ponto de algumas pessoas em determinado momento do filme lançarem bombas de tinta violeta na tela de projeção e ao saírem da sala e adentrarem o hall do cinema onde estavam expostas algumas obras de Dalí, quebrarem-nas. Mas qual ou quais os motivos desses ânimos terem assim se inflamados?
L’age d’or (A Idade do Ouro) é o segundo filme da parceria Buñuel/Dalí e o primeiro filme sonoro de Buñuel. A dupla já trabalhara no controverso e não menos brilhante UM CHIEN ANDALOU (Um cão andaluz) de 1928 que para se ter uma ideia inicia-se com um trecho do Manifesto Surrealista e nasce de dois sonhos que a dupla tivera – espasmos inconscientes nas palavras de Buñuel.
No auge do Movimento Surrealista, A Idade do Ouro é uma grande contribuição no campo da Sétima Arte, assim como o próprio Dalí já havia contribuído no campo das artes plásticas.
À primeira vista, A Idade do Ouro é uma sucessão de planos sem nexo, uma miscelânea de argumentos, mas isso à primeira vista. Se o filme fosse uma sucessão de planos racionalmente sequenciados e concatenados não estaríamos falando do filme como um legítimo expoente do surrealismo.
A película é uma afronta ao moralismo ocidental, uma crítica à Igreja Católica e à transformação da ciência no novo baluarte divino e referência moral em detrimento da emoção humana e da valorização das sensações.
O filme é uma crítica à supervalorização de Apolo feita pelo Ocidente em detrimento de Dioniso. O ocidente tornou “impossível” a junção desses dois princípios estéticos e morais em nome da racionalidade exacerbada e contraditória. A crítica é explícita, mas o veículo surreal, não seria uma contradição? Ou uma contradição intencional?
Cenas como na qual se vê um barrete episcopal sobre a cabeça de um esqueleto nas areias da ilha de Mallorca sendo acossado pelas ondas do mar até um dos momentos finais nos quais os autores aludem ao famoso conto do Marquês de Sade -120 dias de Sodoma- e mostram o grande mentor da orgia (uma representação alegórica de Jesus Cristo) saindo do castelo com tochas de cabelo das mulheres que foram objeto da sua perversão e as pendurando na cruz, passando pelo homem que injuriado com uma criança que o importuna mete uma bala de espingarda na cabeça da mesma são exemplos do jogo imagético produzido pela parceria Buñuel e Dalí.
A Idade do Ouro causou uma repercussão enorme na sociedade francesa e europeia das primeiras décadas do século passado, chegando a ser sua exibição proibida por quase cinquenta anos na França.
É talvez a primeira e grande heresia do cinema mundial que serviria de inspiração para toda uma série de gênios da sétima arte como o próprio Bergman e Pier Paolo Pasolini.
A parceira Buñuel/Dalí atinge seu ápice com L’AGE D’OR, um filme que deve ser visto e revisto, lembrado e relembrado porque é um clássico. E a própria definição de clássico nos remete àquilo que por mais que tenha sido produzido num contexto longínquo não perde a sua atualidade. A crítica dos mestres do surrealismo expressa na película de 1930 continua viva a determinados aspectos da nossa sociedade do século XXI. A estética de uma época aborda e reflete a moral e a ética dessa mesma época seja negando-as ou reafirmando-as.
A Idade do Ouro é um dos maiores filmes que o cinema mundial já produziu e um claro exemplo de que as artes não são apenas veículos de fruição estética.
Professor Substituto da Universidade Federal de Ouro Preto e Doutorando em Educação pelo PPGE: Conhecimento e Inclusão Social da FaE/UFMG. E-mail: herbert.filadelfia@gmail.com