Ana Luiza Jesus da Costa
Em uma Universidade que funciona razoavelmente, você encontra pessoas que trabalham o tempo todo porque elas adoram o que estão fazendo. É o que elas querem fazer. Elas recebem a oportunidade, têm os recursos e são encorajadas a serem livres, independentes e criativos. O que poderia ser melhor? É o que elas gostam de fazer. E isso, repito, pode ser feito em qualquer nível (Noam Chomsky. Sobre a precarização do trabalho e da Universidade. In: Carta Maior, 02/03/2014).
É possível que aquilo que Chomsky aponta como um funcionamento razoável de uma Universidade seja entendido por nós, no Brasil, como o funcionamento ideal. Aqui convivemos com falta de recursos para pesquisa, ensino e extensão. Esta falta é sentida em algumas áreas do conhecimento e em algumas instituições mais que em outras. Não se pode dizer que haja um encorajamento tão grande à liberdade, independência e criatividade, uma vez que estamos regidos pela lógica do produtivismo. Uma disposição tão “pura” das pessoas ao desenvolvimento de seus trabalhos em favor da instituição nem sempre acontece, há apropriações privadas dos recursos públicos, como é o caso de muitas fundações de apoio às Universidades públicas. Entretanto, o que há de menos idílico nessas instituições é a restrição de acesso. Em que pese tudo isso, me atrevo a dizer que a Universidade pública no Brasil ainda “funciona razoavelmente”. Muito mais do que em qualquer outro nível de ensino e que em instituições privadas, por enquanto, elas nos oferecem – a docentes, técnicos e estudantes – oportunidades e recursos para “fazermos o que adoramos fazer”. É necessário lembrar, porém, a parcela de trabalho ultra explorado e desvalorizado que se efetua sob o regime de terceirização, principalmente os serviços de limpeza e segurança dentro das Universidades. É com muita preocupação que uso o advérbio “por enquanto”, no momento em que assistimos a aceleração de um processo de desmonte das Universidades públicas no Brasil. As estaduais paulistas estão na “vanguarda” desse processo. Este é o cenário do movimento paredista que vamos abordar nas linhas que se seguem.
No dia 27 de maio de 2014 teve início uma greve unificada entre todas as categorias das três Universidades estaduais paulistas. Diferente do que o reitor da USP declarou à revista Veja, a decisão não foi fruto da “dinâmica de sindicalismo na vida universitária” que, segundo ele, devemos abandonar, mas sim de uma necessidade inadiável. Chegado o mês da data base das categorias o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo (CRUESP) anuncia, naquela que decreta ser a última reunião para tratar do assunto, zero por cento de reajuste salarial, o que significa redução de salário diante do índice de inflação do ano. O motivo alegado foi a crise orçamentária derivada dos gastos com a folha de pagamento dos servidores. Na USP a folha teria atingido os 105 % da receita. As reservas financeiras da universidade entrariam num estado grave de desgaste. Para equilibrar as finanças seu novo reitor, Marco Antonio Zago, promoveu, a partir do início do ano de 2014, o contingenciamento de verbas: desde recolhimento de recursos dos projetos docentes, cortes de bolsas de estudos, até a interrupção na contratação de pessoal, passando por cortes no contingente de funcionários terceirizados, interrupção de realização de determinados exames no Hospital Universitário, etc. No caso específico da USP, a gestão anterior do reitor João Grandino Rodas, na qual Marco Antonio Zago era pró-reitor de pesquisa, foi responsabilizada por má administração dos recursos da Universidade.
Impulsionado pela greve abriu-se um debate sobre financiamento e transparência na gestão das instituições de ensino superior marcado pelas divergências de análise da conjuntura e de interpretação dos números. Fomos levados a nos perguntar se existe, realmente, a crise orçamentária que os reitores, principalmente Marco Antonio Zago, afirmam existir e de onde ela provém? Os argumentos, com dados quantitativos, apresentados pela Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (ADUSP) mostram uma realidade com contornos diferentes, onde o vilão não é a “folha de pagamento”. Segundo a Associação dos Docentes, há inconsistências na alegação de crise financeira das Universidades estaduais paulistas, mas, sobretudo, há um processo de necessária expansão por que passaram essas Universidades nos últimos anos sem a correspondente ampliação em sua dotação orçamentária. Alguns campi de expansão da USP e da UNICAMP foram criados com a promessa do governo do Estado de ampliar o repasse de verbas, o que não aconteceu. De acordo com dados da ADUSP, entre 1995 e 2012, ocorreu, no caso da UNESP, uma ampliação de 52,5% nos cursos de graduação, 81,0% do número de alunos matriculados, 47,0% de cursos de pós-graduação, 348,5% de títulos de mestrado e doutorado outorgados. Enquanto isso, a ampliação do número de docentes foi de apenas 3,7% e os técnicos administrativos tiveram redução de 8,3%. Na UNICAMP e na USP a lógica da proporção entre aumento do volume de trabalho e contingente de trabalhadores (docentes e técnicos) é praticamente a mesma.
Apesar das dificuldades enfrentadas, as estaduais paulistas mantiveram a eficiência, mesmo nos termos do chamado “produtivismo”. É importante notificar a relevância dessas instituições para a produção científica do país. Segundo a FAPESP (agência de fomento à pesquisa do Estado de São Paulo), “as três instituições paulistas lideram o ranking das universidades brasileiras que mais publicaram artigos científicos entre os anos de 2007 e 2011, de acordo com a edição mais recente do SIR World Report, divulgado em julho pela Scimago Lab. (…) O SIR World Report 2013 avaliou cinco anos de produção científica das instituições de ensino superior de todo o mundo que publicaram, em 2011, pelo menos cem trabalhos científicos indexados na base de dados Scopus. Produzida pela editora holandesa Elsevier, a Scopus é considerada uma das maiores bases de dados científicos do mundo, englobando mais de 20 mil periódicos especializados. Quando se leva em conta o número total de publicações (desconsiderando trabalhos feitos por academias de ciência, hospitais, fundações e centros nacionais de pesquisa), a USP é a instituição brasileira mais bem colocada – ficando em quinto lugar no ranking mundial, com 48.156 trabalhos publicados entre 2007 e 2011. (Boletim da Agência Fapesp, 28/08/2013).
Estas instituições, todavia, não têm um quadro de abundância de recursos. É notória a necessidade de ampliação das verbas. Estamos diante de uma escolha política: se julgamos importante o papel cumprido pela Universidade em nossa sociedade é justo que ela seja financiada, promovida, fomentada. Os movimentos engajados na luta por direitos sociais defendem que a educação pública deve ser financiada com verba pública e que a verba pública fique nos serviços públicos em vez de escoar para a fomentar a iniciativa privada. O que está em jogo é exatamente o caráter público e gratuito da Universidade. A quem interessa manter uma Universidade de qualidade, que faça pesquisa, ensino, extensão, crie autonomia intelectual, tecnológica e possa estar a serviço do povo? Ao contrário disso, a educação, especialmente a superior, tornou-se um grande negócio. Podemos atestar essa afirmação pela proliferação de instituições privadas de ensino superior, algumas delas parte de grandes conglomerados multinacionais. Políticas de crédito estudantil e manutenção de bolsas em universidades privadas como o FIES e o PROUNI vêm tornando mais atrativo esse veio de lucro fácil para o empresariado da educação e canalizando para ele o recurso público. Projetos educacionais mercadológicos não deixam de seguir o princípio básico da economia de mercado, a busca pelo lucro. O caminho historicamente garantido para busca do lucro é a redução de custos da atividade desenvolvida, especialmente reduzindo gastos com a manutenção dos trabalhadores. No caso da educação, os resultados dessa lógica são a precarização do trabalho docente, a mediocridade das condições materiais e imateriais de aprendizagem e produção de conhecimento.
É para defender o indefensável que a grande mídia no Estado de São Paulo e no Brasil concentra seus esforços em gerar adesão aos projetos privatistas do ensino superior. O que a visão conservadora de mundo presente na grande mídia defende é o monopólio do conhecimento e a manutenção da educação formal como ferramenta de estratificação social. No mesmo dia, 02/06/2014, dois grandes veículos nacionais de comunicação – O Globo e Folha de São Paulo publicaram matérias defendendo o pagamento de mensalidades nas Universidades públicas. O Globo, a partir de documento publicado pela OCDE questiona as cotas como caminho para reduzir disparidades sociais e propõe que o pagamento de mensalidades por “aqueles que puderem pagar” mantenha a gratuidade dos “estudantes menos abastados”. Com argumento semelhante, Folha de São Paulo afirma que mensalidades poderiam ser pagas por 60% dos estudantes da USP. Ambas matérias citadas partem da premissa que a Universidade pública é um espaço de privilégios. Este discurso generalista não resiste a mais breve observação empírica. As Universidades públicas não são instituições homogêneas sob nenhum ponto de vista: nem do corpo docente (diferenças de níveis na carreira, diferenças de regime de previdência, diferenças nas condições de trabalho, diferentes visões de mundo); nem do corpo discente (diferentes pertencimentos sócio econômicos, étnico raciais, de gênero, diferentes estágios de formação – graduação, pós-graduação, diferentes concepções e crenças); nem dos demais trabalhadores que nela atuam (diferença entre concursados e terceirizados, entre níveis de formação escolar, diferenças de gênero e étnico raciais, diferentes de visão de mundo). Talvez, há anos atrás, elas tenham sido mais monocromáticas, mais previsíveis quanto à procedência e à história de seus membros. A Universidade no Brasil já esteve mais fechada. Lentas mudanças no cenário educacional, menores do que gostaríamos, já fazem diferença em nossa conjuntura. Mais jovens concluem o ensino médio e demandam ensino superior. Políticas de ação afirmativa fazem parte da ampliação do direito à educação. Do interior da própria Universidade, elementos críticos defendem sua abertura e compromisso social. Mais pessoas se graduam, buscam a pós-graduação e, num universo geral de desqualificação do trabalho docente, o ingresso na carreira do magistério superior ainda é um horizonte almejado. Isso significa que maior número e mais variados perfis de profissionais prestam concursos para o magistério superior ingressando em seus quadros de pessoal.
Ao mesmo tempo em que as Universidades são chamadas a se atualizarem e responderem aos anseios da sociedade são também atacadas por concepções traduzidas em políticas que as atiram na arena do mercado para que busquem recursos para seu funcionamento. São levadas à expansão necessária sem, porém, condições adequadas para manutenção da qualidade de ensino, pesquisa e extensão. Seus quadros veem precarizadas suas condições de trabalho e existência, o que pode ser exemplificado pelas sucessivas reformas previdenciárias, das quais a última estabelece a aposentadoria não mais com o valor integral de nossos salários, mas pelo teto do INSS. Diante deste complexo cenário precisamos ter cuidado para não enveredarmos pelo falso dilema que recaiu sobre a educação básica no seu processo, ainda inconcluso, de universalização: quantidade versus qualidade.
Hoje, no Brasil, não há outro locus de produção de conhecimento científico, tecnológico, artístico e literário como a Universidade pública. Para que ela siga cumprindo, refinando, ressignificando este papel, necessita de condições para o exercício da sua autonomia relativa, fator imprescindível em qualquer pensamento crítico e criativo. A autonomia de seu projeto político e pedagógico não pode funcionar como uma chantagem por meio da qual os governos sonegam-lhe recursos financeiros. Autonomia esta que a iniciativa privada, por definição, não garantiria. A Universidade pública tem importante papel social a cumprir e o equívoco não está nos salários de seus professores e técnicos, nem em suas condições de trabalho, ou nas condições de estudo de nossos alunos que ainda não são as ideais. Os grandes equívocos estão na miserabilidade e desvalorização do trabalhador brasileiro em geral e a falta de vagas no ensino superior público que impossibilita o livre acesso a todos que desejam cursá-lo. Devemos lutar para estender as condições de trabalho e estudo e os parâmetros de nossa carreira universitária à educação básica e não, ao contrário, nos conformarmos com ataques, desqualificação e precarização em nossas condições de trabalho e em nossa carreira. Defender as estaduais paulistas contra o arrocho salarial que se apresenta é lutar pela Universidade pública, gratuita, de qualidade, e avançar na luta é abri-la cada vez mais para os filhos e filhas do povo. No momento histórico em que nos encontramos, ou aprofundamos a democratização do ensino superior tanto no que diz respeito ao ingresso quanto à gestão, ou amargaremos seu retrocesso e degradação.