Era uma criança, de seis anos de idade…

José Heleno Ferreira

Todas as pessoas têm direito à integridade física. A violência, a tortura, os maus tratos são inadmissíveis nas relações humanas. Tudo isso é óbvio, encontra-se afirmado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na nossa atual Constituição Federal… Mas vivemos um tempo em que o óbvio precisa ser dito.

A violência política que se instaurou nos espaços escolares, nas relações familiares, em todas as instâncias da sociedade brasileira tem, a cada dia, assumido contornos mais assustadores. Perdemos a capacidade de dialogar? Como restaurar a capacidade de debater e discutir diferentes pontos de vista sem agressões físicas ou verbais?

Nos últimos meses, seja na reta final do processo eleitoral, seja após a proclamação dos resultados das urnas, os casos de violência cresceram vertiginosamente. Alguns deles, incluindo agressão física a crianças e adolescentes. Um desses casos, noticiado em diversos veículos de comunicação, teria ocorrido no centro-oeste mineiro, na cidade de Divinópolis, no último dia 30 de outubro.

De acordo com a denúncia feita pela mãe da criança, seu filho, de seis anos de idade, que estava passando o final de semana com o pai, foi à padaria, onde foi abordado por um policial militar reformado que estava conversando com outras pessoas sobre as eleições presidenciais. Ao ser perguntada se ela era Bolsonaro, a criança teria respondido “sou Lula lá”! Diante disso, o policial reformado teria enforcado a criança. A agressão só parou quando o pai da criança chegou. O policial teria, então, soltado a criança, que chegou a perder a consciência e ficou com hematomas no pescoço. O policial teria dito, ainda, que estava brincando.

O caso em questão está sendo acompanhado pelo Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Mas, para além do caso em si, é preciso que nos coloquemos uma questão: como chegamos a tal ponto? Como enfrentar esta situação?

Ao longo da história da humanidade vivenciamos momentos críticos, nos quais os direitos fundamentais dos homens e das mulheres foram vilipendiados. Os horrores do holocausto nazifascista, a ditadura civil-militar no Brasil entre muitos outros poderiam ser citados como exemplos de um tempo em que a violência foi a regra e não a exceção.

O que estamos vivendo na sociedade brasileira nos últimos anos é também um tempo marcado pelo incentivo à violência, pela divulgação de notícias falsas, pelo uso da religião para manipular a consciência das pessoas, pelo culto às armas, pela negação da ciência, do conhecimento e do diálogo. Em abril de 2016, numa sessão transmitida em rede nacional para toda a nação, assistimos a um deputado federal exaltando um torturador confesso ao justificar seu voto favorável ao impeachment da então presidenta da República. Em seguida – e continuamente – acompanhamos o esgarçamento de todo o tecido social. A criminalização das pessoas envolvidas nas lutas populares, nas lutas em defesa dos direitos humanos, o crescimento do feminicídio, dos ataques às religiões de matriz africana, os assassinatos de indígenas e pessoas LGBTQIA+… As tentativas de amordaçar profissionais docentes, a desqualificação da escola pública e de todos os serviços públicos, a destruição de florestas e outros biomas, a criminalização da pobreza. Enfim, assistimos ao constante crescimento de um projeto político de contornos fascistas.

O caso da criança agredida na cidade de Divinópolis, esperamos, será devidamente esclarecido, uma vez que foi amplamente divulgado e vem sendo acompanhado pelas instâncias responsáveis pela defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Mas não se trata de um caso isolado.

Quando nos deparamos com esta situação, em que uma criança de seis anos é agredida fisicamente por manifestar sua opinião acerca do processo eleitoral, precisamos nos perguntar como chegamos a este ponto. E, principalmente, precisamos nos perguntar como sairemos desta situação.

Nos anos 1960, quando indagado sobre o papel da educação, o filósofo Theodor Adorno afirmou que o ensino precisa se constituir como uma arma de resistência à indústria cultural, contribuindo para a formação da consciência crítica. Afirmou ainda que a principal tarefa da educação é garantir que Auschwitz nunca mais se repita.

Precisamos nos orientar por este paradigma! Mais do que nunca se faz necessário um incessante trabalho que tenha como princípio uma educação libertadora nas comunidades, nas escolas, em todos os espaços públicos. O trabalho constante de construção de uma cultura da paz e de respeito aos direitos humanos. Há que se aprender, com Paulo Freire, que não existe imparcialidade, que todo trabalho educativo é orientado por uma base ideológica. E que a questão fundamental é se a base ideológica que orienta nosso trabalho é excludente ou inclusiva.

Este é o desafio que o tempo presente nos coloca. Omitir-se diante deste imperativo ético pode nos tornar cúmplices do horror instaurado na sociedade brasileira.


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