Um caso de sensibilidade

Ivane Laurete Perotti

Aportara nela a sensibilidade sintomática.  A moça que teimava em abrir a janela, todos os dias, tinha lentes de contato. Dessas que permitem compartilhar o mundo. Sem filtros. Sem regras de aproximação.

Formada nas Ciências da Terra, abraçava o planeta a partir das pedras que se lhe apareciam. Às vezes, rolando. Outras vezes, jogadas em linha reta. Certeiras pedras de entupir caminhos. Roliços fragmentos sedimentados nas pregas do vento. Nas crenças sólidas. Nas heranças vaporosas. Surpresas vão e vêm. A moça sensível dragava pântanos. Cantava “amarelinhas”. Dentro e fora. Fora e dentro. Casas. Números. Pedras. Pedrinhas. Minerais condensados. Objetos de apreciação.

Neste caso de sensibilidade, havia uma personagem determinante: a janela. Batentes reforçados pela pressão externa. Verga coroada de possibilidades. Guarnição de costumes. Sem borboleta de metal. As coloridas, de asas firmes, voejavam rente ao vidro. Imaculadamente limpo, sim. Mas nem sempre isento de riscos. Poeiras. Panos passados à mão seca. Bafos. Dedos oleosos. Sobras de guerra. Da guerra. De ambos os lados da janela. Um vidro separando escolhas. Reparando danos. Contracenando fugas. Um retângulo de realidade. Era assim que se desenhava a teimosia da moça.  Conhecia pedras. Mirava flores. Pássaros. O acordar do sol.  A preguiça da lua. Abria a janela para não sufocar sensibilidades. Quase. Quase sufocava. Era a métrica dos dias. Do trabalho. Das rotinas.

Quanto mais a moça sensível se dedicava aos Estudos Científicos da Terra (redonda), mais alimentava as lentes de contato. Partilhas assumem a temperatura do contexto compartilhado. Nas fotografias da janela aberta adejavam pardais. Casais de forneiros, “Joões-de-barro”. Fios de alta tensão decorando os postes habitados. Papagaios em coro verde. Arrulhos enamorados. Gaviões em plumagem madura. Pretos. Brancos. Pretos e brancos. Pombos dançarinos. Sóis em armação de dia. A memória sensível organizava-se em arquivos visuais e sonoros. Arquivos construídos nas interfaces do mundo.

Este caso de sensibilidade é importante porque a moça plantou árvores. Fez Yoga. Meditou. Controlou as tristezas em suas valas de despejo. Escreveu versos no anonimato do lirismo adulto que lhe acometia. Quente lirismo. Resgatou beija-flores. Tartarugas. Louva-a-deus. E foi no período dos muitos resgates que ouviu profecias:

_ Louva-a-deus? Pirou? Você perdeu o juízo?

_ Ele está se recuperando…

_ É um simples Mantodea! Vai morrer, de qualquer jeito!

Morreu! Como todas as vidas se findam, findou-se a do pequeno inseto. Para alguns, “cavalinho-de-deus”. Ela o resgatara do outro lado da janela. Estava ferido. Perdera um dos membros anteriores. Presa fácil para as corujas da vizinhança. Moradoras da noite. Esfomeadas. Caçadoras impiedosas. Rápidas. De visão aguçada.

_ Eu não disse? – era a voz do profeta das obviedades.

_ Tá…, mas ele estava se recuperando.

_ Acontece! Lhe avisei. Avisei!

Acontecia muito com ela. Recebia avisos e admoestações. Grátis! Especialmente, quando a sensibilidade registrava comportamentos. Admirar a noite se transformava em compulsão letárgica. Cumprimentar o sol era positivismo crônico: negação do real. Abrir a janela diariamente, muito umbilical. Apreciar as pedras era divagação. Medo do futuro. Ansiedade mascarada. Defender a Terra: casuísmo. Pensar as terras: esquerdismo. Poderia ter escolhido outra profissão. Geologia não dava futuro. Os sábios anteciparam.

A geóloga tinha lentes de contato. Decorava janelas com guirlandas de realidade. Feixes do mundo. Freixos diuréticos. Cursava as letras das linguagens nãos verbais. Cheirava terra seca. Secava terra úmida. Corria pedras. Escrevia pássaros. Era uma delinquente emocional. Típica presa de um sistema que se valia do emocionalismo.

_ Não sou emotiva. Sou sensível!

_ Dá no mesmo.

_ Não! São duas coisas absolutamente diferentes!

_ Precisa de terapia. Compaixão é para os fracos.

_ E a empatia? É para quem?

_ Empatia é ausência de autocontrole.

_ São coisas diferentes. Você não pode misturar tudo no mesmo…

_ Buraco? Ah! Posso, sim! Você e o seu psicologismo já deram para mim.

A moça conheceu discursos amassados a pau. Não de reflorestamento. Bom, nem poderia ser. Pois o pau dessa inferência tem outra tabela. Mas o que desejo expressar é que ela não deitava “coisices”. Ela via o mundo com as lentes de contato atravessadas desde o nascimento. Contato com o mundo. Contato com as janelas do céu!  Azul. Coalhado por asas e bicos. Ela plantava sentimentos. E quedas. Várias. Sobre as quais já perguntara ao espelho da alma o propósito de se descobrir porões e sótãos. Ficou sem resposta. A psicanálise demora por segurança. Era sensível. Assinava ternuras. Compaixão.

Sobre a sensibilidade como um cultivo, não entrevistamos a geóloga. Desnecessário. As janelas fechadas de nossas vidas, histórias e decisões são estatísticas com fundamento refletido em massa. Janelas virtuais não abrem partilhas. Abrem-se em linha reta. O fundo é sempre igual. O mesmo. A pressa comendo o tempo. A rapidez pagando teto. A ilusão formando nichos. Vamos por aí. E isso não é ruim. Ou é?

Sem profecias! A sabedoria não se antecipa. Cavalga o dorso das sensibilidades. Não usa calculadora, mas ainda assim, no “ecrã” de uma tela, os algoritmos flertam “pexels”. O usuário decide a mão. Os arquivos versam cores. Imagens vêm e vão. E a virtualidade cobre distâncias. Longe ou perto, quem decide é o olhar do leitor. Do mundo. Das janelas.

Se a ternura perder enunciado, seremos uma multidão de sapinhos. O retorno do “homo sapos” foi previsto na mesma época em que o homem pensou saber que sabia. Sabe? Não sei. Mas abro a janela todos os dias. Aprendi com a sensibilidade presenteada pela geóloga deste caso.


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