Tornar-se palestina

Cleide Maciel 

Na livraria da minha cidade, os olhos buscam por leituras que preencham o tempo, que me distraiam enquanto, morando no sítio, aguardo a passagem da pandemia (?). Não que já não tenha material suficiente para estudos, não que não haja leituras pendentes, “deveres de casa” ainda por fazer, livros para serem revisitados… Mas há uma gulodice… Dou voltas pelas estantes, manuseio e não me decido. O dono do espaço, que acompanha meu “périplo”, de repente, coloca três volumes à minha frente: – Tenho certeza de que você vai gostar destes! Nem pestanejo, pago e levo os livros comigo. Todas autoras mulheres, não as conheço, os títulos inusitados! Tornar-se palestina (Lina Meruane, Relicário/BH, 2019, traduzido por Mariana Sanchez. Coleção Nosotras) ficou no final da pequena pilha. No entanto, é dele que, nesse momento, convido à leitura! Dois motivos, fortes para mim, justificam a escolha: a busca pela compreensão de si e a educação.

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A autora, professora de cultura latino-americana na Universidade de Nova Iorque, é chilena (Santiago), de pais também chilenos e neta de palestinos emigrados para o Chile em 1915. A busca pelos vazios da história pessoal – o nome, as próprias lembranças, as do pai, tias, enfim, a memória familiar – leva-a à terra de origem de seus avós. A “primeira parte” do livro traz as narrativas e reflexões da experiência de conhecer Tel Aviv, Jafa (onde é acolhida por um casal de amigos), Beit Jala (cidade dos avós, onde residem primas distantes), Jerusalém, Hebron. Aparentemente, um trajeto como tantos outros. Entretanto, a forma escolhida por Lina Meruane para nos conduzir em sua busca é pura manifestação de arte literária. Surpreendem-nos os “diálogos narrados”! Desconcertam-nos os argumentos incomuns! Sensibilizam-nos as percepções/constatações do ponto de vista de quem está em situação de desvantagem (difícil não se tocar pela causa palestina)! Seduz-nos a opção por uma escrita organizada em curtos textos (vou ler só mais isto, depois vou dormir…), com seus subtítulos ora literais, ora metafóricos! O território que compõe a memória antiga da autora, agora se enche de terra, de gente de carne e osso, seus dias palestinos

Na “segunda parte” – Tornar-nos outros – Lina Meruane retorna à Palestina, sem sair do lugar (Volto aos territórios ocupados um ano mais tarde, desta vez acompanhada da escrita de outros). Escolhe para leitura intelectuais de posições diversas: de alguns se aproxima, de outros se afasta. A grande questão que a inquieta e vai orientando suas reflexões é o modo pelo qual as narrativas são construídas para legitimar as ações dos vencedores – no caso, de Israel – e produzir o apagamento/desqualificação dos vencidos, os palestinos (Era preciso voltar às questões do passado e às vicissitudes da linguagem que serviu para construir esta história… Não existem armas mais traiçoeiras que as da linguagem). É preciso ler o texto de Meruane, para sentir o impacto profundo de suas análises! E ao final, não deixa dúvidas sobre sua escolha. – … não tem mais volta: adquiri um compromisso palestino quando escrevi a palavra retorno e a inscrevi no meu presente. Quando me propus a desnudar cada palavra e escancarar sua alucinada obscenidade. Quando acolhi certas formas de dizer as coisas para proteger seu sentido ameaçado e restituir significados que foram deslocados… Eu me comprometi quando me impus a examinar a gramática dos silêncios que deixam em branco as páginas necessárias para enfrentar este conflito… Quando comecei a pensar, incessante e obcessivamente, na transformação da realidade que certas palavras tinham levado a cabo… tornando-se parte de um complexo sistema que estrutura a maneira como entendemos a história palestina e a contamos. Seus atributos morais. Seus subentendidos ideológicos, mobilizados para servir às projeções e aos projetos de poder…

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Excetuadas as referências ao local de trabalho de Lina Meruane, a universidade, o tema da educação/escola esteve presente no livro em três momentos. No primeiro, logo no começo, quando a autora atribui à avó a mudança da família, do interior do Chile para a capital, em busca de melhor educação, incluindo a universidade. No segundo, quando visita a escola Max Rayne, em Jerusalém, uma das cinco escolas integradas de Israel. Trata-se de uma instituição multicultural, para crianças árabes e judias, e que tem por objetivo a paz futura. Aprendem três línguas: árabe, hebraico e inglês, vivem as mesmas experiências curriculares, mantêm os vínculos religiosos próprios. A intenção das famílias é quebrar preconceitos e estereótipos. As crianças não têm que concordar umas com as outras, mas sim ouvir e respeitar o próximo, mesmo quando houver discórdia. Dentre as regras, a proibição do uso de apelidos difamatórios, os xingamentos. E aprender a discutir sobre fatos. Por último, quase ao final do livro, quando se propõe a pensar os pequenos atos que desativam o ódio. As palavras de uma antropóloga de que é preciso julgar as pessoas de acordo com seus atos e não de acordo com suas origens, faz com que a autora retorne à gravação da visita à escola integrada. Do funcionário judeu que a atende, ouve, novamente: – É preciso… parar de ver os outros como representantes do governo ou como representantes do Hamas, ver cada pessoa pelo que é e o que faz, como indivíduo responsável por seus atos (destaques da autora). Meruane mostra os nós deste argumento: é necessário compreender o contexto do indivíduo para avaliarmos seu grau de resistência e oposição aos sedutores apelos coletivos à violência.

O que fazem, em nosso nome, os coletivos aos quais pertencemos?  Como nossos alunos percebem seus vínculos, para além do familiar? É possível ensinar pertencimento coletivo?

 

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