Sobre as dores, as mentiras e a indiferença

uma canção para não adormecer

Ivane Laurete Perotti

“Eu só peço a Deus/ que a injustiça não me seja indiferente.”
(Mercedes Sosa,1978)

Veio abaixo o caixilho da porta. Carcomido pela investida dos tempos, o tabique desceu junto. O que antes supunha-se um convite para entrar, agora lembrava uma bocarra: escancarada, fantasmagórica. Miserável bocarra. Não se alimentara o suficiente das mentiras contadas ao vento do despreparo. Ficava ali, encenando a tragicomédia anunciada pelos ditames da antecipação.

Mas o vento do despreparo alimenta-se também de vontades. Sua sobrevivência exige tomar para si o corpus de outras almas: de preferência, as desprovidas de asas e garras. Asas, beijam o infinito, exalam liberdade e tomam gosto por ideias. Garras, criam espaço, delimitam territórios, lutam pela vida. Asas e garras provocam indigestão na pança ideológica do vento amalgamado em correntes de pressão. E de pressão, o vento tem ciência. Formado por gases instáveis que transitam entre o mundo de Hades e o pico do Olimpo, o vento empurra o que vem pela frente. Cego e surdo: “É um monstro grande e pisa forte/Toda fome e inocência dessa gente.” (SOSA,1978).

Na bocarra da porta, algumas figuras rabiscavam. Indiferentes aos fantasmas eloquentemente perigosos, rabiscavam. Tabique ao chão, sobrara a forma indefinida de alguns dentes: afiados dentes para a mastigação. Indiferentes, as figuras rabiscavam. Indelével sopro de figuras contra o falso fundo do que fora, lá atrás, a demarcação de uma porta. Porta de entrada ou porta de saída, ao gosto de quem entra ou sai.

O vento deu-se conta da leveza das figuras. Asas?  Abocanhá-las sem decifrar o enigma remetia à possibilidade de morrer brisa. E brisa, nos tempos sem limites, tinha a cor do arco-íris: perigosa aquarela com ideias de transformação.

Enquanto o vento sussurrava ponderações, a bocarra da porta remexia-se descontente.  O fundo sem fundo de seu antigo caixilho purgava queixas, dores, fome de informações. Detidamente, o rosto indefinido das figuras que rabiscavam perfilaram-se em diâmetro aberto. Da roda, vozes com garras soltaram o verbo: “[…] não posso dar a outra face/
Se já fui machucada brutalmente.” (SOSA,1978).

O vento do despreparo, tomado pela fome de mastigar o prato do dia, vociferou inverdades diante da bocarra miserável. Os restos do tabique espatifaram-se contra outras portas semiabertas. Os dentes ainda fiados da antiga boca foram do chão aos quatro cantos, se é que eram quatro. Resistentes, pois leves, as figuras que rabiscavam perceberam que era hora de apresentarem-se:

_ Presente! Somos o berço desta equação: EX DUCERE!

No fundo sem fundo da antiga boca aberta, uma frase cortava o chão pisado pelas narrativas inacabadas: “Que a morte não me encontre um dia/
Solitário sem ter feito o que eu queria.” (SOSA,1987)

SOSA, Mercedes. Eu só peço a Deus (canção). In: ELLWANGER, Raul. Nas velas do violão: crônicas, letras e partituras. Edição do autor. Disponível em: tps://amar.art.br/nas-velas-do-violao-cronicas-letras-partituras. Acesso em 07 de maio de 2019.


Imagem de destaque: Dima Pechurin / Unsplash

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