Desde a quarta-feira da semana passada, cinco de abril, imprensa, blogs, formadores e deformadores de opinião, influenciadores-abutres, políticos diversos, assim como especialistas e gente simplesmente sensata, vêm noticiando e repercutindo a morte, a marteladas, de quatro crianças. A coisa aconteceu em uma creche – lugar vulnerável a misóginos e outros tipos de covarde – na cidade de Blumenau, a 143 quilômetros de Florianópolis, em Santa Catarina.
O impacto foi enorme e não sem motivos. O assassinato de seres humanos de pouca idade parece aumentar a violência do ato, por si só bárbaro. É nos pequenos que projetamos muitas de nossas fantasias de um presente e de um futuro que se mostram pouco prometedores. A presença incontornável da infância a organizar o cotidiano de muitas famílias (ao menos as das camadas médias) é sinal desse apego tão contemporâneo. O fato de as crianças mortas serem filhas únicas demarca o lugar que ocupavam, e diz algo sobre a dimensão dos afetos a elas destinados.
Os ambientes educacionais devem, por princípio, serem espaços protegidos para as crianças, jovens e adultos que os frequentam. Sem isso, e sem a sensação de segurança, não há educação que se sustente, por mais crítica e avançada que possa ser. Quando as famílias levam seus filhos a uma instituição, ou mesmo quando eles chegam a ela com suas próprias pernas, transfere-se boa parte da responsabilidade para os adultos do lugar. Na escola deve vigorar as regras que lhe são próprias e que correspondem ao papel que se espera dela. Trata-se de um território distinto daquele da casa, onde conteúdos são ensinados e acontece uma educação para a vida pública. Nem sempre isso ocorre a contento, o que é lastimável, mas, de qualquer forma, espera-se que crianças e jovens, assim como os maiores, ao menos voltem vivos para seus lares. É razoável. É bom não esquecer, contudo, que a escola está ocupada por práticas violentas, e desde muito tempo (ou desde sempre) há brutalidade entre seus muros. A novidade é quando ela chega sem que um dos seus habitantes (alunos, professores, especialistas, demais profissionais) seja o portador mais imediato.
O acontecimento em Blumenau se junta a outros Brasil afora, como o com a professora Elisabeth Tenreiro, em São Paulo, vítima fatal de uma facada desferida por um menino de 13 anos. Pipocam na imprensa relatos sobre violentos atos e planos malogrados, além das notícias falsas, elas mesmas algo terrível, dado o pânico, o descontrole e o desvio de atenção que provocam. Isso tudo gera muito medo em adultos e crianças, estado de ânimo que tem sido respondido pelo poder público de forma abrupta, com medidas que pretendem gerar segurança, como canais específicos de informação, mas, também, impactar visualmente. Nas escolas estaduais de Santa Catarina teremos a presença de policiais armados.
Não tenho condições de avaliar tecnicamente a pertinência ou não da decisão do governador Jorginho Melo (PL). Fico, no entanto, pensando sobre a viabilidade da proposta. Se é necessária a presença das armas, então ela também será nos novos alvos a serem escolhidos pela violência extrema: casas comerciais, universidades, bares e restaurantes, estádios de futebol etc. Alvos, aliás, que mais ou menos já se constituem como tais. Sendo assim, cada porta ou espaço livre do país demandaria segurança armada. Além de inviável, podemos supor as consequências que daí adviriam.
Há algo mais, tão visível quanto queiramos ver. A consternação que nos causa a morte da menina e dos meninos de Blumenau não é mesma que a que nos afeta ao nos depararmos com o cotidiano de violência imposto a populações escolhidas para deixar morrer: aquelas que vivem nas periferias das cidades, especialmente se forem formadas por pessoas negras, e as indígenas. Não são elas gente como a gente? Costumamos ser bastante insensíveis ao sofrimento atroz e cotidiano a que muitos estão expostos. Entre eles, crianças.
O massacre em Blumenau carece de palavras para ser bem circunscrito, mas não é uma exceção. Tratar o caso como monstruosidade em nada ajuda a saber da dinâmica propulsora no qual se insere o episódio. Anos de masculinidade tóxica exposta e praticada com cínico orgulho, culto às armas e legitimação do ódio às diferenças, se juntam com a vida centrada na maquinaria mágica e perversa da internet. Essa mesma que foi responsável, em grande medida, pela eleição de Jair Messias há cinco anos, e que quase o reconduziu ao cargo. Não é fácil ser otimista.
Para saber mais
ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019. 597 p. (Tradução de Virgínia Helena Ferreira da Costa, Francisco Lopez Toledo Correa e Carlos Henrique Pissardo).
GROSTEIN, Fernando. Quebrando mitos. 1989 (documentário: www.quebrandomitos.com.br).
TÜRCKE, Christoph. Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. São Paulo: Paz & Terra, 2016. 144 p. (Tradução de José Pedro Antunes).
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