Quanto aos diplomas, registram apenas parte do aprendizado. Em pergaminho animal, vegetal ou em folha de A4, são apenas símbolos. Símbolos da jornada iniciada há exatos trinta e nove anos quando embarquei no ônibus da Gontijo rumo a Belo Horizonte e a Ouro Preto. Embora o campus de Ciências Humanas da UFOP se localizasse em Mariana, o lar era – e sempre será – em Vila Rica. As viagens no tempo, tema recorrente na literatura ou no cinema, para mim, acontecem, verdadeiramente, quando para lá me dirijo. O sol da tarde aquece o adro da igreja do Carmo, ilumina o labirinto de telhados que guia o olhar da viajante até o outro extremo, a igreja São Francisco de Paula (“a da rodoviária”, como indicamos aos não iniciados nos espaços da Vila colonial, imperial, renegada pela República, resgatada pelos Modernistas). Assim como o canto dos galos tecendo a manhã, aqueles telhados tecem os caminhos a serem seguidos pelo olhar de quem aprecia a cidade “do alto”. Basta segui-los para descortinar as hierarquias passadas (ou não?) traduzidas em casarões, igrejas, bairros. Arquiteturas e espaços delimitadores de gentes. Ainda hoje, a cidade aparta…
Alerto ao leitor ou leitora que iniciei este texto pelo seu final. Sim. Os diplomas foram apenas parte da minha história. Iniciei por eles pois fiquei com receio de esquecer o pensamento – esse ser fugidio – que me passou pela lembrança ao me sentar diante do teclado do computador. Meu avô materno. Ele me falava dos diplomas. Me lembro do dia em que, sentada à mesa da cozinha, junto a ele e uma de minhas tias, ele anunciou seu desejo:
“Um dia quero te ver, diploma em uma mão e filho na outra”
O filho veio dos diplomas. Dois publicados, um terceiro em projeto, alguns capítulos espalhados por lá e por cá, artigos… Uma pequena prole. A única. A doutora em História de hoje aprendeu a gostar de ler com este avô. As coleções que haviam na casa foram lidas e relidas. Nelas estavam histórias da mitologia grega, exemplares de animais variados, geografias distantes… Mas havia também os quadrinhos!!! Gibis com as aventuras de Mickey e Pateta, Mônica e sua turma, super-heróis, livros de bolso com histórias de faroeste. Letras e palavras povoavam a imaginação desta jovem leitora. Talvez tudo isto explique minha predileção pela obra de Umberto Eco, A misteriosa chama da Rainha Loana. O retorno de um professor à casa de sua infância, após a perda parcial de sua memória, é uma imersão em si mesmo. Abrir as portas de cômodos há muito tempo cerradas, revisitar brinquedos, livros, revistas, entre muitos outros objetos, faz com que leitores e leitoras percorram os caminhos que um dia foram traçados por aquele homem/menino em sua construção pessoal e profissional. Tudo isto regado com muita poesia literária. E um cuidadoso panorama da história da Itália, no século XX.
Hoje foi assim. Nenhum cômodo cerrado foi visitado. Apenas chamei o chaveiro para que trocasse as fechaduras das portas do apartamento. Ao vê-lo trabalhando me foi impossível não me lembrar de meu avô. O torneiro mecânico, chefe da oficina da Volks, em Garça, no interior de São Paulo, mantinha as ferramentas cuidadosamente guardadas e organizadas em armários nos quais o local das mesmas era determinado pelas estampas correspondentes de cada uma delas. A oficina ficava ao fundo de um terreno imenso. Imenso também era o pé de tamarindo que oferecia sombra e frutos àquele lugar. Magia pura. Nem preciso fechar os olhos para ver a manhã de sol, o armário azul-marinho com as estampas de ferramentas em branco, os carros mais ou menos desmontados ou amassados (alguns, muito amassados!), e o pé de tamarindo… O torneiro mecânico também era um artesão de mãos grandes e produção delicada. Contraste gritante com o “gênio forte”, como diriam na família. Trabalhava a madeira e o metal. Às vezes juntos, outras vezes, individualmente. Me ensinou a apreciar a beleza, a usar os talheres à mesa de forma muito polida. Estava ausente quando morreu, há algum tempo atrás. Mas todo o aprendizado, para além dos diplomas, que me foi por ele legado, resumo em uma frase de Guimarães Rosa que considero muito adequada a todos que viajam pelos sertões desconhecidos do mundo exterior e interior: “Conheci. Enchi minha história”.
Imagem de destaque: Piqsels