O que faz um texto literário ser bom? Anton Tchékhov, apontado na literatura como um mestre dos contos curtos, aponta, dentre outros elementos, dois especiais sobre os quais me detenho hoje: “1) ausência de longas verborragias de cunho político, social ou econômico; 2) total objetividade;” (TCHÉKHOV, 2009). Na mesma linha segue Ítalo Calvino, que vê na Rapidez um valor a ser defendido na literatura do próximo (atual) milênio (CALVINO, 1990).
Em linhas gerais, defendem esses autores que os textos literários devem ater-se ao essencial para a construção da obra, evitando borraduras verbais desnecessárias. A concisão, a “eficácia narrativa” e a sugestão poética estariam em primeira linha. Mas o que são, senão as próprias mazelas do mundo contemporâneo, a rapidez e a objetividade? “O tempo lento do ler proporcionou ao homem também o tempo da análise, da reflexão, das associações de conceitos e ideias, transformando-as em sistemas filosóficos e em ciência” (BAITELLO JÚNIOR, 2005, p. 28-29).
A defesa cega do pensamento (e texto) rápido e objetivo é, ela mesma, uma verborragia de cunho político, social e econômico. É a defesa do privilégio da imagem, do memético (o meme), que nos oferece retratos estáticos da realidade, mas não nos permite inferir sua dinâmica complexa. É um tipo de autossabotagem: a abstração e o raciocínio relacional são menos treinados, prejudicando a própria recepção do texto literário e a compreensão do mundo. Sem compreendê-lo não podemos nos organizar para agir por sua transformação em um mundo melhor. Defender cegamente a rapidez é defender a inércia.
É preciso, portanto, que o leitor assuma uma posição ativa na recepção do texto literário: conduza o tempo e estabeleça relações. “Ler é produzir sentidos por meio de um diálogo, uma conversa” (COSSON, 2014, p. 35). A literatura é um dos meios mais antigos de formação de identidade grupal, compartilhamento de valores e comportamentos e de fornecimento de sentido à vida.
A pergunta que se impõe, a essa altura, é: quem define o que é essencial? E se o que é “verborragia política” para um for, para outro, a digressão filosófica essencial que dá sentido ao texto e à mensagem passada pelo autor, em sua vontade de estabelecer um diálogo sobre valores com o leitor?
Em “Das memórias do príncipe D. Nekhliúdov”, Liev Tolstói nos brinda com uma borradura verbal memorável, em que defende a poesia (em seu sentido metonímico) como o fim de todas as ações humanas, algo que “todos adoram, procuram, só querem isso e só isso buscam na vida” (TOLSTÓI, 2018, p.266). O dinheiro, para o narrador-personagem, é uma ilusão a qual, entretanto, “todos, ou noventa e nove por cento […] dirão que [é] o maior bem do mundo” (TOLSTÓI, 2018, p.266).
As mesmas pessoas – hóspedes estrangeiros do hotel Schweizerhof – que defendem o dinheiro como bem de maior valor pararam nas minúsculas sacadas de seus aposentos para assistir a um artista de rua cantar com seu violão, situação testemunhada pelo personagem. Ao que o narrador interroga se por dinheiro aquelas pessoas “admitiriam ser expulsos da terra natal […] se amontoariam […] admitiriam ficar aglomerados nas sacadas durante meia hora, obrigados a se manter imóveis e em silêncio” (TOLSTÓI, 2018, p.266).
Naturalmente, a resposta a que chega é que não. A “obrigação” seria a volição interna e a necessidade de poesia – esse bem-maior-do-mundo – que não é enquadrável objetivamente em uma imagem, nem é rapidamente digerida. Leva-se, ao menos, ½ hora para a consumir.
Para saber mais:
BAITELLO JÚNIOR, Norval. As núpcias entre o nada e a máquina: algumas notas sobre a era da imagem. In: BERNARDO, Gustavo (org.). Literatura e ceticismo. São Paulo: Annablume, 2005. p. 25–42.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.
TCHÉKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2009.
TOLSTÓI, Liev. Contos Completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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