Convite à leitura

Cleide Maciel

A leitura de um autor, a partir da interpretação de outro, pode ficar comprometida porque estaria condicionada/restrita ao olhar do terceiro (ou, a um “olhar de segunda mão”). Nem sempre. A seleção de Walnice Nogueira Galvão para compor o livro Melhores Contos, de João Guimarães Rosa (Global Editora, 2020), representa uma grande contribuição à divulgação e compreensão da obra desse expoente da nossa literatura!

A professora e crítica literária organizou os contos em torno das linhas mestras que mais caracterizam a obra de Rosa: a metalinguagem, o outro, o humor e o narrador. Em seu prefácio – que intitula A voz da saga – esses eixos são analisados e os contos escolhidos para ilustrar cada um deles, descritos de modo sucinto. Nas perspectivas da metalinguagem e do outro, cita, ainda, textos que não fazem parte desse Melhores Contos

Se abre o livro, também o fecha com uma curta biografia de Guimarães Rosa. Dentre os fatos trazidos, destaca os percalços enfrentados na produção da primeira obra, publicada em 1946, Sagarana. E esclarece: – O neologismo… desse primeiro livro, ‘sagarana’, reúne em sua bela sonoridade de quatro aaaa a palavra ‘saga’, significando conjunto ou série de histórias, ao sufixo tupi ‘rana’ que significa ‘à maneira de’. Assim, o título do prefácio é uma reverência ao mestre. Além disso, a escrita de Walnice Galvão apresenta outra marca roseana: a de dizer muito em poucas palavras.

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Ao todo, compõem a obra, dezesseis contos. Quatro deles extensos: São Marcos (Sagarana), Meu tio Iauaretê (Estas Estórias), Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo (Sagarana) e A hora e vez de Augusto Matraga (idem). A bem da verdade, um conto longo para cada linha mestra. Os demais, textos curtos a maior parte, seguindo uma escolha do autor no decorrer da vida. 

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Em minhas leituras, quase sempre, procuro, destaco e anoto passagens que se referem à educação (à escola, à instrução). No caso desse livro, não foi diferente. Mesmo sabendo das escolhas temáticas do autor, não pude me furtar ao hábito! Desse modo, tendo mergulhado nas histórias contadas nos Melhores Contos, apenas uma delas foi parar em meu arquivo profissional: o conto Famigerado (Primeiras Estórias). 

É a história do médico que recebe a visita de um grupo de cavaleiros, um deles, chefe, o Damásio, dos Siqueiras, homem perigosíssimo. Não queria se consultar.

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– “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada…”

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– “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-me-gerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?”

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– Famigerado?

– “Sim senhor…”

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– Famigerado é inóxio é “célebre”, “notório”, “notável”…

– “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”

– Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos…

– “Pois… o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”

– Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito…

– “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?”

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

– Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!…

– “Ah, bem!…” – soltou, exultante.

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– “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!”

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Não tem como recontar o que Guimarães Rosa narra: é ler ou copiar! Também não dá para ler uma vez só! Bem à frente na leitura, aparece um fio que ficou solto lá atrás. É preciso reler, encontrar esse fio, reconectá-lo para que a história tome forma e sentido. E com isso, amplifique nosso deleite. Um desafio constante que testa nossa competência na leitura, embola e espicaça nossa mente e sensibilidade, desnuda nossa ignorância…

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Ao final do prefácio, Walnice Galvão encerra: – Finda a leitura dessa seleção, o leitor, em estado de graça, pode ficar satisfeito por ter realizado uma jornada pelo que de melhor existe em ficção de língua portuguesa. Não tenho como discordar. Mas, ao estado de graça, ainda acrescento: inquietude!


Imagem de destaque: Global Pocket / Divulgação

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