A lógica das batatas – literatura para quê? (Parte I)

 Ivane Perotti

 Não era d’Arc. Era Joana, apesar do complemento que a mãe impusera. A devoção cobrava préstimos. Vivia sob o peso da outra. Quem dera nascesse na França. Plantaria batatas.

— Você é louca. Louca completa.

A distância entre loucura e loucura completa não lhe parecia confiável. Um pouco louca. Mais louca. Louca total. Cheirava a medo das partes. Coisa que desconhecia. Se nascesse na França, plantaria batatas. Em seu nono aniversário, pedira-as de almoço. A mãe tentou assá-las no fogão de lata. Um acidente ameaçou o aglomerado. O aglomerado era uma ameaça. Mas a sua boca não era santa. Era louca. Culpabilizada pelo acidente, há quase um ano não comia umazinha sequer. Sequer comiam há quase um ano. Essa era a verdade que pegava. Catadores de recicláveis, sofriam com a tal doença. Moravam perto do aterro. Os casebres não recebiam água, luz e essas coisas que o dinheiro leva para os que já têm dinheiro. Viviam do lixão. Uma feira a céu aberto. E um pouco mais longe dele, a escolinha de três salas. Com água. Luz. Comida quente. E batatas às quintas-feiras. Muitas batatas na sopa de misturas. Comia pelos olhos. Nariz. Boca. Pele. O prato cheio navegava por suas entranhas. Abria córregos. Riachos. Um mar de felicidade. Lágrimas acompanhavam a travessia. Uma colher. Duas colheres. O prato. As batatas. Respirar era pecado. Deixava os pedaços no canto das bochechas. Batatas não pediam dentes. Macias. Derretiam na boca louca. 

— Você come pelos pés, Joana. Tenha modos.

Que modos? Eram batatas. Ba-ta-tas! Se tivesse nascido na França… 

Em um momento de decisão, pedira uma batata. Queria levá-la, inteira, para casa. O assunto rendeu uma semana de conversas. Ganhou asas entre as crianças. Rimas com Joana Darque e batatas faziam-na rir por dentro. Não eram rimas. Eram loucura. Completa. Dos outros. Não dela. Então chegou aquela doença. Distribuíram merendas, no início. Só no início. Sem batatas. Nenhuma. Depois, apenas o lixão. O medo condenara o aglomerado. Esmolar nunca fora fácil. Agora, impossível. Alguns arriscavam. Retornavam somando cansaço à fome furunculosa. Só tinham vez na escola. Lá eram iguais. A mesma dor. As mesmas dificuldades. Alguns aprendiam. A maior parte comia. Comida por uma vida. Imprópria. Chegara a imaginar que o mundo inteiro fosse um aterro. Quando pequena, não via além do aglomerado. Ao ser levada por alguém durante a mendicância, seguia na sonolência que acometia as crianças dali. Só mais tarde assaltou a cidade com olhos de motor. Motor ligado. Algo poderoso dividia as pessoas. Algo que lhe fazia sentir culpa. Constrangimento. E por muito tempo, ela separou o mundo em dois. As coisas que encontravam no lixão contavam partes de histórias inalcançáveis. A começar pelos nomes das coisas. Era cama ou sofá? Parecia cama. Chamavam sofá. Ela dormia em um. Vermelho. Rasgado. Cheirava a ratos. Cadeira ou poltrona? Por que existiam ambas? Não bastava uma delas para acomodar as…as …bun… as náldigas? Jarra ou copo? Quando havia água: um copo para muitos. Vaso sanitário? Era mesa no casebre dos vizinhos. No outro, já fora um berço. Seu pai os amontoava em uma parte mais distante da casa e dizia que deveriam construir um banheiro. Banheiro? Bacia? Quando tomavam banho, a água era dividida na bacia com remendos. O resto, fazia-se entre os arbustos. Ou dentro de sacolas. Dependia da vontade de cada um. Particularmente, gostava desses objetos que tinham um nome a mais para copo. Tá! Era pensamento seu. Vaso, segundo alguns, servia para colocar flores. Entediante. Plantas precisam de terra e sol. Ah! Se ela tivesse batatas, talvez…, mas gostava dos tais vasos sanitários. Quebrados ou não, guardavam aquele brilho de coisa rica. Lembravam uma cadeira com buraco. A função não lhe pertencera, até chegar à escola e se deparar com dois deles. Difícil no começo. Estranho e inquietante. Então, todo aquele brilho servia para…hum! A riqueza era estranha. Quando aprendeu sobre esgotos e rede de água, ficou deprimida. Água e esgoto eram coisas sérias. A vida não lhes levava a sério. Fala de seu pai com emendas de sua mãe. Já acreditara que o seu mundo era o mais colorido. Depois, reconheceu a tristeza das cores. Machucadas. Apagadas. Comidas pelo tempo. Outra vez pensava nas batatas. Pela lógica, elas faziam parte dos dois mundos. Seriam comuns a ambos, se não faltassem ali. Lera sobre arte na cozinha. Um assunto desnecessário, desde que se tivesse comida. Não gostara muito de João e o pé de feijão. Menos ainda de João e Maria. O tratamento aos feijões mágicos, a pobre vaquinha posta à venda pela mãe e trocada pelo menino era a prova de que desconheciam o valor das fontes de alimentos. Sem noção! E a casa feita de doces, então? Bruxa ou não, a armadilha fora exagerada. E nenhum crédito à inteligência das crianças. Entendera que a fome estava por trás daquelas histórias. Mas ela as contaria de outro modo. Sem magia. As suas questões sobre os contos maravilhosos eram ouvidas pela professora que os chamava de contos fabulosos. Liam pelo menos um por dia. O seu pai desaprovava as leituras. 

— Leitura para quê?

— Literatura, pai. Literatura…

 

Continua…

 

Para saber mais: 

RIOS, Rosana. (reconto) João e Maria. Coleção Meus Primeiros Clássicos. Ilustração Laura Michel. RJ: Edelbra, 2020.

RUTH, Rocha. (reconto) João e o pé de feijão. São Paulo: Salamandra, 2010.


Imagem de destaque: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

 

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