Marcos Borges dos Santos Júnior
Na contemporaneidade, a produção científica tem como uma das propostas a interseção entre diferentes categorias sociais a fim de oferecer maior precisão/explicação de um dado fenômeno. Tal orientação para a ciência não significa correlacionar, por exemplo, “território” e “espaço/tempo” sem a diluição destes conceitos, mas sim a criação de um “diálogo” que tente extrair as possíveis convergências sem a descaracterização das divergências. No plano axiomático significa colocar estas categorias em igualdade ou mesmo trazer uma interrogação para tal igualdade, assim conectando a fundamentação teórica com a materialidade vivida. O mesmo pode ocorrer, com as questões étnico-raciais e de gênero. Portanto proponho uma pequena reflexão inicial a partir destas categorias em correlação com a educação.
A educação compreendida como uma vinculação de ensino/aprendizagem com as formas de ser e existir no “mundo vivido” tem a possibilidade de produzir uma imagem geracional formativa, isto é, um ethos que condiciona e é condicionado pelo “Eu” e “Outro”. Uma imagem (que é a mera representação daquilo que se estipula “mundo vivido”) muitas vezes vivenciada de forma natural tem a capacidade de normalizar demarcadores sociais como masculino/feminino, homem/mulher, negro/branco e europeu/outros sem questionar a própria naturalidade do “mundo vivido”. A normalização destes demarcadores auxilia na construção de determinismos, por exemplo, com o tratamento na população negra pela sociedade brasileira como inferior, sujo e autodestrutivo pontuado através das produções científicas de Gislene Aparecida dos Santos (2002) e Neusa Santos Souza (1983). Tais autoras, percorrendo em linhas teóricas diversas (mas existiria um axioma, conectivo entre estas linhas?) por meio de estudos, metodologias e práxis discutem a conceitualização e movimentação do “ser negro” perante a sociedade brasileira. Na mesma direção (mas continente africano), também existem produções na área de gênero vide a autora Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021) que tensiona o uso da categoria social “mulher” nos modos de relação do povo autóctone Oyo-Yoruba (África Ocidental) no século XIX, à medida que elabora uma interseção com as questões étnico-raciais pela cosmopercepção.
Um embasamento teórico de tais categorias sociais (relacionando a materialidade vivida) para a produção da educação, tem a possibilidade de oferecer questionamento acerca do “mundo vivido” posto como natural, produzindo exposições de diálogos entre diferentes concepções, levando em consideração a existência do/no/com “Outro”. Não se trata de uma disputa ideológica ou epistemológica hierárquica, mas uma abertura existencial pela alteridade, pelo real interesse do/no/com “Outro”.
Não nos enganemos, a educação como um dos lócus de formação “humana” atravessada pelas questões étnico-raciais e de gênero que projeta o questionamento da naturalidade, vai na contramão daquilo que Renata Felinto (2022) menciona sobre a “humanidade e modernidade”.
A modernidade europeia construiu e disseminou por entre os territórios e povos invadidos e violentados pelas/os suas/seus uma acepção de humanidade focada no europeu como referência de ser humano, civilidade, cultura, inteligência, beleza, padrão, autodenominando-se a referência universal em todas as áreas. Às outras populações relegaram o status de culturas subdesenvolvidas ou mesmo selvagens. Eclipsando o protagonismo das tecnologias que consideraram inferiores, silenciaram outras metodologias de ensino, historicidade, aprendizagem, registro, pesquisa, arquivo, que não eram sistematizadas de acordo com os critérios de validação determinados pela própria Europa. Aprimoraram o epistemicídio a fim de subtrair e exotizar conhecimentos, sobressaindo como povo que produziu e acumulou sabedoria com o crivo científico e racional que estabeleceram para si e para outrem (FELINTO, 2022, p. 123-124).
A educação e posteriormente, por exemplo, a sistematização através do sistema de ensino auxiliaram na constituição da imagem europeia (um derivativo imaginário conectado com o real) como criadora real do mundo que habitamos. Uma hegemonização educacional redutora de seres viventes a única forma de ser e saber “humano”. Se estipula então, um jeito, uma maneira de ser que produz um gênero, uma sexualidade, uma etnia e raça. “A era do conhecimento” como algumas pessoas da acadêmica evoca a contemporaneidade sintetiza um atravessamento epistemológico de validação da Europa como o lócus de tudo.
Não me estendendo mais, a possibilidade através da educação questionar a naturalidade das questões étnico-raciais e de gênero abrem caminhos para novas maneiras de ser e existir no mundo, necessitando assim constantemente estudos aprofundados!
Referências
FELINTO, Renata. Adinkra: o sussurro canônico do ventre do mundo. In: NASCIMENTO, Eliza Larkin; GÁ, Luiz Carlos (Orgs.). Adinkra: sabedoria em símbolos africanos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó: Ipeafro, 2022.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
Imagem de destaque: Galeria de Imagens.