Cláudio Márcio Oliveira
Estamos todos cientes da crise política que atravessa o Brasil. Vivemos tempos sombrios em que, após 52 anos do Golpe Militar de 31 de março de 1964, assistimos estarrecidos a uma verdadeira ameaça ao Estado Democrático de Direito (que em verdade nunca se mostrou muito consolidado), em meio a uma polarização entre setores a favor e contrários ao processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Polarização que se expressa nas manifestações em espaços públicos e nas redes sociais da Internet. Gostaria de abordar neste ensaio um aspecto em especial dessas manifestações: a dimensão corporal dos sujeitos envolvidos.
Os movimentos políticos sempre mobilizaram e demandaram os corpos dos sujeitos: nas marchas, nas vestimentas, no tremular das bandeiras coloridas, nos gritos e palavras de ordem de ambos os grupos de manifestantes. Ainda que hoje muitas vezes certas manifestações tomem um cunho espetacularizado e mesmo caricatural de fazer política, podemos dizer que, em todas elas (mesmo as “virtuais”) os corpos dos manifestantes estão sempre presentes.
Se nós nos colocamos em ação no mundo com e a partir dos nossos corpos, chama-me a atenção nesse momento outra relação entre política e corpo, tendo este último não mais como instrumento, mas como alvo da ação política. No caso de certos adversários políticos, seus corpos são tratados como verdadeiros navios inimigos, a serem abalroados por submarinos submersos em águas turvas tingidas de duvidosas tonalidades de verde-amarelo, singrando pelos mares das manifestações e postagens de Internet. Exemplos dessa relação não faltam na história mais recente e no momento contemporâneo desse país. Longe de querer tratar de forma exaustiva esta temática, meu intuito neste texto é ilustrar e problematizar algumas dessas ações.
Comecemos pelo ex-presidente Lula, tomando como enfoque a sua corporeidade. Se as minhas memórias do final dos anos 80 não me traem nesse momento, lembro-me perfeitamente aos ataques à barba e ao tom de voz grossa e supostamente pouco polida do ex-candidato e agora ex-Presidente da República. Figura pública que hoje é “trajada” de forma vexatória com balões em vestes de presidiário, o que configura mais uma intervenção ofensiva ao corpo do “inimigo”.
Outro bombardeio ao corpo de Lula se mostra absurdamente ofensivo, diria inclusive letal para as pretensões de desenvolvimento de uma democracia à brasileira, que historicamente sempre se mostrou notadamente frágil. Em uma postagem nas redes sociais foi divulgada uma charge consistindo de uma mão contendo quatro dedos, associados a quatro características de seu detentor. Fazendo clara referência a Lula, a charge em questão associa a cada um dos dedos as seguintes características: arrogância, incapacidade, prevaricação e incoerência. No dedo ausente faz-se referência à ética, como algo que faltaria àquela mão, à mão do ex-presidente. Ataque ao corpo que associa, de forma tosca e abjeta, uma mutilação anatômica a uma inferioridade moral.
O que me espanta é que o autor da charge remete seus ataques à anatomia de uma mão direita que está longe de ser uma idiossincrasia de Lula, mas que constitui a conformação corporal de centenas de trabalhadores no Brasil, mutilados literalmente pelas relações de trabalho na indústria metalúrgica e outros setores da economia (o número de mortos e vítimas de seqüela permanente na construção civil não é menos estarrecedor). O corpo de um indivíduo atacado e “faltante” é também um corpo de um sem número de pessoas, um coletivo que torna-se, direta ou indiretamente, alvo da perversidade e da crueldade da charge em questão. Pessoas vulneráveis à ação de quem as avilta e as explora nas ainda mais perversas e cruéis relações entre capital e trabalho. Longe de uma caricatura que acentua traços de uma fisionomia singular de um político para ironizá-lo, o fato em questão me leva a pensar em que medida o alvo é bem mais amplo e difuso do que à primeira vista aparenta ser.
Passemos agora à Presidenta da República, Dilma Rousseff. De antemão assumo todas as limitações, por ser homem, de nunca poder apreender e sentir o que uma mulher passa de fato, em especial quando se torna vítima de violência.
No entanto, o que percebo neste momento contemporâneo é que seu corpo é um alvo duplo – inclusive entre setores da própria esquerda – pelo simples fato de ser, ao mesmo tempo, mulher e Chefe de Estado, algo incompatível para misóginos machistas de plantão.
Dilma, que foi torturada na ditadura militar, foi há bem poucos meses vítima de estupro em uma série de veículos automotores circulantes no território nacional, a partir de um adesivo colocado junto à entrada da bomba de gasolina. Assim como em Lula, também o estupro desejado de Dilma não é o estupro apenas do “inimigo”: é o estupro de todas as mulheres, ao se entender que sob certas circunstâncias tal prática seria aceitável, admissível e até desejável.
Os ataques ao corpo de Dilma não terminam por aqui. O desejo expresso de alguns manifestantes pela sua morte por enforcamento no DOI-CODI é uma clara manifestação de ódio. Outro ataque ao corpo, corpo este que deve ser asfixiado no sentido metafórico e literal do termo. Mais uma vez um ataque que, ao visar o inimigo, nos afeta a todos. Ou alguém se atreve à estupidez de justificar eticamente a morte de Wladimir Herzog e tantos outros no regime militar?
Ao contrário do que muitos esperavam, Dilma Rousseff sobrevive e se torna Presidenta da República. Daí que mais ataques visando seu corpo são mobilizados. O mais recente, realizado pela revista IstoÉ, é um claro apelo à misoginia. Atribui às emoções e a um suposto temperamento da presidenta a sua suposta incapacidade de governar. Seu rosto é claramente fotografado fora de contexto e adulterado na capa deste periódico. O propósito é transmitir uma ideia de cólera, que seria inapropriada a quem ocupasse o cargo majoritário do Executivo.
Já não bastasse a tortura, o estupro e o enforcamento, o corpo de Dilma, repleto de “explosões nervosas” precisa ser tornado inapropriado, incapaz, repulsivo e abjeto. Mais um ataque que se estende a todos nós, inclusive os homens, pois pressupõe uma dada racionalidade instrumental na vida pública em que não cabe espaço para quaisquer emoções. Na desqualificação dos possíveis sentimentos de uma mulher temos a desqualificação da condição humana de todos nós.
O que remete a tratar o adversário político como alguém que possui um corpo abjeto e repulsivo? Que sujeitos arvoraram pra si um corpo perfeito e infalível na política? Que lógicas ou indignações nos autorizam a violentar os corpos, submetê-los à nossa libido, ou mesmo matar aqueles que nos são antagônicos no jogo democrático?
Não dá pra não se referir aqui aos filmes nazistas, em que a figura de Adolf Hitler aparecia sempre em contra-plongé, uma técnica de enquadramento de câmera que torna a coisa ou pessoa filmada bem maior do que ela é. O corpo do Fhürer esbanjava força, robustez, virilidade e perfeição. As formas de apresentação pública de Mussolini não se diferenciavam muito desse ideal. “Perfeição encarnada” do líder que, por sua própria “natureza”, lhe autorizava o extermínio dos outros.
E é aqui que sustento a ideia de que tomar o corpo do Outro como alvo é, em última instância, a expressão de um modus operandi fascista de fazer política ou, melhor dizendo, de desfazer-se da política. É fascista por negar a possibilidade de alteridade naquilo que é mais íntimo aos sujeitos, as suas corporeidades (o plural aqui não é nem um pouco gratuito ou despretensioso). Fascista por arbitrar um ideal purista e hipócrita de “perfeição” – nas ações, sentimentos e nos corpos dos sujeitos – que não comporta o contraditório e o conflituoso, ou seja, não comporta o democrático. Por essas e por outras razões talvez hoje eu seja cada vez mais acolhedor das minhas “imperfeições”, que vão desde minha barriga saliente, passando pelas linhas de expressão, meus desvios posturais, até a cicatriz torácica que me acompanha desde os seis anos de idade.
Tal negação do Outro “impuro”, “imperfeito” – e, pra usar os jargões atuais, “petralha” e “corrupto” – pressupõe e autoriza, em formas tácitas e/ou explícitas, a sua eliminação, tão exaltadas nos clamores fantasmagóricos de alguns manifestantes pelo retorno de uma ditadura militar no Brasil. Coisa hedionda que só pode gerar nostalgia naqueles que são orientados pelo sadismo, forma por excelência de maltrato com os corpos.
O filósofo alemão Theodor Adorno dizia que somente aquele que é duro consigo mesmo outorga pra si o “direito” de ser severo para com os outros, de forma que, dialeticamente, toda expressão de sadismo advém e sustenta também relações de masoquismo. Temos a dureza de quem ataca os corpos de figuras públicas, assim como os corpos de todos aqueles cuja diversidade representa aquilo que não é hegemônico em nossa sociedade: mulheres, negros, índios, pobres, gays, lésbicas, transexuais e outros grupos humanos hostilizados e violentados. Tal dureza expressa, inevitavelmente, a incapacidade de amar. E só faz Política e aspira à Democracia quem é capaz de amar.
Se pararmos pra pensar que toda política é em verdade uma biopolítica, pois incide sobre as vidas e os corpos das pessoas envolvidas, talvez possamos adotar, a partir de uma perspectiva amorosa – que aqui não tem nada tem de piegas ou romântica – novas relações com o Mundo e com Outros. Com mais tempo e com mais zelo, lutando para que as lógicas destrutivas, instrumentais, autoritárias, espetacularizadas e invasivas não se imponham, talvez possamos um dia incluir os sujeitos sociais, de corpo inteiro, num verdadeiro jogo democrático.
Cláudio Márcio Oliveira é Professor Adjunto de Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação da UFMG (DMTE/FAE/UFMG) e sócio pesquisador do CBCE (Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte).