Quando a brincadeira se confunde com a realidade

Marcelo Silva de Souza Ribeiro

Ainda que seja uma data comemorativa, o Dia das Crianças faz parte de políticas públicas que combatem o abuso e a exploração infantil, que sustentam o direito da criança (e adolescentes) e protegem à infância e à adolescência. Certamente é uma data “símbolo” e tais políticas devem ser permanentes de modo a garantir um contexto de desenvolvimento seguro. No entanto, quando saber o que realmente contribui para esse contexto seguro ou o que ameaça a infância e a adolescência?

Infelizmente as políticas de direito e proteção à infância e à adolescência têm sido profundamente esgarçadas nos últimos anos por causa da diminuição do orçamento e redução da quantidade de ações empreendidas pelo governo federal (ver dados publicados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC, 2022). Só esta constatação já indicaria um grave sinal de alerta.

Como se não bastasse a redução de recursos para financiar as necessárias ações, o governo federal, por meio de figuras públicas como a ex-ministra da “Mulher, da Família e dos Direitos Humanos” e mesmo o presidente da república, prestam desserviços a nação uma vez que proferem falas do tipo “pintou um clima” (aludindo a possível prostituição de garotas) ou quando divulgam informações não comprovadas de crianças sequestradas e que teriam seus dentes extraídos para a prática de sexo oral. Mesmo que, nos malabarismos de possíveis justificativas e explicações em nome da proteção da família e dos bons costumes, essas falas e informações destroem as políticas de direito e proteção à infância e à adolescência. As escusas apresentadas e o dizer que é brincadeirinha não seriam formas camufladas, inclusive, de ulcerar as políticas de direito e proteção?

A apologia à arma e suas consequências no recrudescimento de uma cultura da violência é uma das bandeiras do atual governo Bolsonaro, e que tem também chegado ao universo da infância, inclusive já debatido aqui no Pensar Educação em Pauta, no texto “Bang-Bang: vamos matar crianças?”.

O “brincar de armas” e a participação em manifestações de ódio envolvendo crianças marcou a recente comemoração do Dia das Crianças, que em nosso país é também o dia que se comemora, na tradição católica, a padroeira do Brasil, Nossa Senhora de Aparecida.

Na passagem de Bolsonaro, em campanha eleitoral, na cidade de Aparecida (SP) no Dia da Padroeira, além de insultar o território sagrado dos católicos, contribuiu para atiçar manifestações de ódio em relação aos jornalistas da TV Aparecida, incluindo aí a participação ativa de crianças que imitavam os adultos.

No mesmo dia, e na esteira da política de apologia à arma, em Uberaba (MG) foi promovido o “Tempo de Brincar”, realizado em parceria com a Polícia Militar, o Exército e a Guarda Civil Municipal. A “brincadeira” consistia na exposição de armas e seus manuseios (incluindo granada).

Já no Rio de Janeiro, a Polícia Militar, dentre outras atividades em comemoração ao Dia das Crianças, promoveu a brincadeira do “policial comandante”, onde crianças apareceram armadas com simulacros de fuzis e vestidas com uniformes policiais. “(…) crianças dentro de uma viatura preta da PM são chamadas pelo policial que está comandando a operação. O militar bate forte na porta do veículo e, aos gritos, diz: ‘Bora! Acionou! Bora!’” (fonte: G1 em 12/10/2022).

Ora, eu mesmo tenho defendido, na linha de autores como Gerard Jones (“Brincando de Matar Monstros”), que o “brincar de violência”, seja com bonecos de armas, nos jogos eletrônicos etc. não é necessariamente algo ruim para o desenvolvimento infantil. Isso porque, no nível da brincadeira a criança pode vivenciar emoções, expressar afetos, elaborar conflitos e mesmo aprender a lidar com os limites do que é fantasia e realidade. Obviamente que tudo depende do contexto em que a criança está inserida. Contudo, o que separa drasticamente as brincadeiras que são importantes para o desenvolvimento e esses episódios retratados, assim como a apologia a arma e a cultura da violência, é que a criança está inserida em contextos reais e por isso ela estaria mais propensa a confundir fantasia com realidade.

Os contextos de desenvolvimento de crianças aqui retratados revelam que há modelos onde elas se espelham, realidades que de fato existem. Evidentemente nunca é uma relação direta e determinante, ou seja, não necessariamente as crianças que imitavam os adultos na manifestação de ódio aos jornalistas da TV Aparecida, as crianças que manuseavam granadas em Uberaba ou as crianças que portavam simulacros de armas no Rio de Janeiro estariam “condenadas” a se tornarem violentas.  Contudo não é algo que deve constituir o contexto de desenvolvimento das crianças sob pena de graves prejuízos.

Nos casos aqui abordados, as crianças parecem estar inseridas em uma cultura da violência, de modo que é muito tênue a distinção daquilo que é brincadeira e do que é real. A fantasia, nesses casos, se confunde com o real e isso pode ser um desastre para as políticas de direito e proteção à infância e à adolescência. Certamente, quando a brincadeira se confunde com a realidade, não há um contexto de desenvolvimento seguro para as crianças e os adolescentes.

Sobre o autor
Dr. em Educação. Professor do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). E-mail: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br


Imagem de destaque: G1

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