Pulsões filosóficas sobre o quilombismo e a Educação

Marcos Borges dos Santos Júnior

Na contemporaneidade, com os múltiplos desdobramentos do racismo que reverberam na constituição do “ser”, deve-se refletir continuamente formas de projetar práticas antirracistas na educação. Neste contexto, o termo “práticas” não reverbera em um pragmatismo produtivista que condiciona em (re)ações destituídas de pulsões sociais, culturais e/ou filosóficas, mas em ações que ousem subverter a estrutura ontológica e epistemológica regente na sociedade. Então é possível evocar, a partir das pulsões derivativas da ancestralidade, o projeto “O Quilombismo”, uma forma de auto-organização e autossuficiência da/para população negra brasileira proposto por Abdias Nascimento (1914 – 2011) em 1980.

Nas palavras de Nascimento (2019, 305), sobre Quilombismo

um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implementação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que existiram e existem no país. O Estado Nacional Quilombista tem sua base numa sociedade livre, justa, igualitária e soberana. O igualitarismo democrática quilombista é compreendido no tocante a sexo, sociedade, religião, política, justiça, educação, cultura, condição racial, situação econômica, enfim, todas as expressões da vida em sociedade. O mesmo igualitarismo se aplica a todos os níveis do poder e de instituições públicas e privadas.

Diferentemente do mundo financeirizado/globalizado contemporâneo, que reformula a concepção do espaço/tempo e das experiências, destoando-se daquilo que se profere de “antigo” e estimulando continuamente o “novo”, o Quilombismo surge como uma proposta de reelaboração da forma existencial e comunitária, resgatando, através da historicidade, os saberes ao longo dos séculos entre a população africana e a sua diáspora, que posteriormente seriam chamados de população negra brasileira. Tais percepções construtoras de identidade étnica (sentimento de pertencimento) e vinculações ancestrais decorrem no projeto de Estado que suscita em movimentos de abertura para o sensível, isto é, numa abertura comunicacional para a real compreensão que constitui o “ser”, produzindo uma transcendência para além das mazelas enfrentadas pela população negra brasileira ou, melhor dizendo, para a satisfação comunitária.

O Quilombismo, por se tratar de uma reelaboração da forma existencial do “ser” negro que tange a multiplicidade das formas da diáspora negra, tem a possibilidade e a potência de caracterização na cosmopercepção (OYĚWÙMÍ, 2021), ou seja, uma provocação ao rompimento dos limites impostos às percepções desenvolvidas pelo “ser” – desvencilhando-se da ideia abstrata da separação do “corpo” e “consciência” como dual – e dos sentidos físicos orientadores constituídos pelo Eurocentrismo. Neste emaranhado de reflexões que não se destoam do “mundo vivido”, é concebível trazer tais pulsões para o campo da educação.

A partir do Quilombismo evoca-se duas ações que podem ser transportadas para a educação (e nos projetos pedagógicos) nos quais são o “ABC do Quilombismo” e a “Semana da Memória Afro-Brasileira”. A primeira proposta trata-se de ensino-aprendizagem do alfabeto com explicações através das experiências que a população africana e diaspórica vivenciou ao longo dos séculos. Temos como exemplo A de Autoritarismo, C de Cuidar e Z de Zumbi. Já a segunda proposta tem o objetivo de focalizar os protagonismos da população africana e sua diáspora entre os dias 14 e 20 de novembro através da crítica, pesquisa e reflexão, assim sendo “um exercício de emancipação e nunca uma comemoração convencional, estática e retórica, que proponha unicamente a evocação de fatos, datas e nomes do passado” (NASCIMENTO, 2019, p. 308).

Tal cosmopercepção do Quilombismo é contribuidora para a constituição da educação à medida que é entendida como uma abertura para as possibilidades e potências de existências negras. Nela, aquele que aprende também ensina, não numa lógica conteudista pragmática que reverbera em determinismos, mas alinhado com a filosofia do Ubuntu, “eu sou porque nós somos” (NOGUERA, 2021). A existência do Quilombismo só é possível através da comunidade no qual o “ser” é constituinte/constitutivo pelo/do “outro”, isto é, a percepção do “eu” surge pelo ato comunicacional/educacional com “outro” elaborando a unicidade.

Por fim, a multiplicidade de se pensar a cosmopercepção do Quilombismo na educação como forma de combate ao racismo e formulação do “ser” negro é infinita. Potências e possibilidades nas ações surgem entre aluno e professor, reverberando em se imaginar novas formas de “ser”, de ensinar/aprender e (co)existir.

Para saber mais 
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africanista. 3. Ed. Re. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.

NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: Elementos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista da ABPN, v. 3, n. 6, nov. 2011 – fev. 2012, p. 147-150. Acesse aqui.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. 1. Ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.


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