O balseiro, o poeta e a máquina de escrever – parte final

Ivane Perotti

_ João? João?

_ Ó-lhó-lhó! É o…

O professor e o poeta em João combinaram surpresa:

_ O que é isso, compadre? Qué rasga as botas?

Ofegante, o balseiro suspendia as pernas da calça como se pelas canelas respirasse. Vermelho pelo esforço.  Suor grosso. Avançava o aclive lindeiro ao atracadouro. Margem amarronzada pelas águas do Rio das Antas. Barrenta correnteza que escondia o fundo.

_ João! Uma…

_ Respira, compadre! Outra armadilha?

_ Armadilha? Não sei… se tu diz!

_ Não tô dizendo, homem!… é, ou não é?

_ Sei não! Uma carta é sempre…

_ Ô tchô! Fala! Uma carta? Para quem?

_ Prá ti!

_ E precisa disso tudo, compadre?

_ Veio de longe! Abre…abre, João!

_ Aqui? Agora? Você é muito do curioso!

Não só o balseiro. Ouviu-se o coro de vozes às costas do vento:

_ Abre! Abre! – eram os espectadores até então silenciosos.

Cena diferenciada. Acontecia, claro! Especialmente às sextas-feiras: “Correio! Ó! Correio! Correio, povo!”. Quem esperava o malote náutico eram os molecotes de costume que depois saíam distribuindo as correspondências recém-chegadas! Coisa de confiança. Confiança e curiosidade. Os mais curiosos esperavam a leitura em voz alta pelos “donos” das missivas. Outros comunicavam os demais com um: “…faz tempo, hem?” Inticá era quase um bem cultural naquela região. Desde que não derribasse para uma camaçada de pau. Desde!

_ Ô, gente curiosa! Por que não levam essa curiosidade para casa?

_ Abre! Abre! – continuaram.

João, primeiramente, leu e analisou o envelope. Grande. Tinha cor de pedra molhada. Virou. Desvirou. Lembrava o formato das folhas de ofício. Aquelas que ficavam espremidas entre os cilindros da velha Royal. Lisas. Silenciosas. Aguardando as letras que batiam atrás da fita. Bate. Bate. Bate.

_ Abre! Abre! Abre! – alguns tentavam espiar as costas do objeto. Remetente vem depois. À frente, quem manda. O destinatário já conheciam.

Foi o balseiro que, soltando a barra das calças, coçou a cabeça com poucos fios. A que se devia tanta demora? Sabia que era coisa séria! Tinha…

_ Não tem, compadre?

_ Né!!! Vocês me atropelam a leitura.

_ …tamo esperando, homem!

_ Veio lá das Minas!

_ Dos ouro?

_ Das Gerais! Parece coisa séria. Vou deixar para depois do jantar.

Não deixou! Se deixasse, pirigava aumentar o tempo que o balseiro aguardaria pela notícia.

_ Mas, credo! É um convite…

_ Lê! Lê! Lê!

_ Minhasarma! Vão querê o quê, contigo, compadre? Havera de sê coisa da lei?

_ Ma… capaz, home!?

_ Te dô dois pila que pode sê!

_ Nem que matasse a pau, compadre! É… é um convite para trocar poesias.

O silêncio carcou ficha. Meio que não dava para entender o que dizia a tal carta. Convite?

Mas a explicação morreu no palanque do banhado! Um vozerio de urgência arranhou as margens do Antas. Rio que é rio faz campana. Percussão de ronda. Ronca. Leva. Lava. Amplifica.

O balseiro desceu a rampa despedaçando a esperança de ouvir os complementos. Uma carta lá das Minas! Muita novidade para um único dia.

Quem   reclamava a balsa? Ganhou a embarcação com pés ligeiros! Mãos em dança de manobra! Chamou o motor à proa aberta. Olhos fechados. O gemido da balsa passeou pelos ouvidos. Fundo chato. Marcas dos anos. Grande boca. Servia para o raso. Pegava um pouco no meio do rio. Águas fundas. Traiçoeiras. Menina dos olhos do balseiro. Sentimental. Resmungava como a esposa quando carente de atenção. Riu-se do comparativo deslavado! Se a esposa desconfiasse da relação que travava com a velha balsa…teria mais aporrinhações! Bem que gostava. Era um jeito de a esposa mostrar quem mandava ali. Creeem! Ele cria! A esposa e a balsa eram o seu tudo. Não vingaram filhos. Deus deitara cedo.

_ Deuzolivre! Não dava prá esperá? O tipo do jeito! – desaprovava os gritos de mais rápido, homi! mais rápido. Ia no trote de sempre. Era tudo o que dava. A água tinha a sua ligeireza. A balsa tinha a dela. Ele só obedecia. Se não fosse de urgência urgentíssima, o grupo ouviria bons esculachos. Bobiça, ali, não garrava tempo!

Atracando a grande boca no barro escuro, reconheceu alguns dos fuzarqueiros que ainda gritavam.

_ Rápido! Rápido, homi! É prá hoje!

O prefeito e seus…seus… Pamonhas! Não viam que ele atracava?

_ Demorô, homi! Tá tanso?

O balseiro trancou a língua dentro da boca por respeito à autoridade. Mas sentiu que as palavras formigavam no cerne dos dentes. Ouviu ainda algumas críticas ao tempo da travessia e respondeu com olhar de tábua recém-aplainada. Havera de sê que aquela cambada estava de lambança. Ou o caso era sério! Se fosse sério, coisa boa não era. Aguçou os ouvidos, e foi ouvindo o que não queria:

_ Isso é coisa de importância pro município. – dizia o prefeito de dentro de suas calças estufadas pela barriga de chopp. Baixo e calvo, parecia uma rolha de tampar poço. Diziam ter “pago” a eleição. Ajudava os cupinchas e descuidava do povo. Principalmente daquela região.

_ Bom para o povo buscá a cidade. Mais imposto!

_ Ô, senhor prefeito! Acha que o… o … o professor vai aceitá?

_ Não é caso de aceitá! É coisa de fazê!

_ Mas ele é bem dedicado…e…

_ Só porque não tem outra coisa prá fazê. Agora…

O balseiro foi tomando a cor das nuvens. A língua descarrilou, vermelha de sangue e raiva.

_ Que judiaria o senhor prefeito tá traquinando? Ah? Qual?

_ Ôpa! Cuidado com a boca, seu…

_ A boca é minha e faço dela o que eu quisé! Que tão aprontando? Que vão dizê lá pro povo do professor?

_ Calma…calma… – era um dos vereadores que formava a comitiva.

_ Estamos levando boas notícias. Fique calmo!

_ Sim, isso mesmo! Agora, o professor pode morá na cidade. Vamo fechá a escola e atravessá as criança dele prá uma escola de verdade!

_ É o progresso, meu amigo! É o progresso!

O rio não contou como a balsa fez a curva em pleno talvegue. Nem a comitiva de ocasião voltou para contar as penas. Até hoje, a pequena-grande escola à margem do Rio das Antas abriga casulos de monta e peso. É o avanço da educação.


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