Provocações sobre a atual Educação

Tiago Tristão

O ‘notório saber’, mecanismo pelo qual pessoas sem formação pedagógica ou sem formação escolar podem atuar no ensino básico, não foi feito pra valorizar outros saberes e quebrar o cientificismo eurocêntrico. Mas, por que não usá-lo para tal? Neste contexto entrariam os xamãs, caciques, anciãos, anciãs e mestras/mestres que detém bibliotecas inteiras em seu repertório, decorrente de sua vivência e organicidade com a ancestralidade.

O desafio seria, então, encampar um movimento nacional para colocar indígenas e quilombolas nas vagas de notório saber. Mas será que nossas pautas alcançam a busca por uma Educação Decolonial? Um ensino que valorize outras epistemologias que há 500 anos estão sofrendo um genocídio epistemológico?

Até que ponto o desenvolvimento da ciência e da tecnologia não utilizam da técnica para matar mais, para degradar melhor a natureza, mesmo acreditando que não ou sem refletir sobre? Claro que isso ocorre, a depender da abordagem e da efetivação da interdisciplinaridade (no caso dos IFs, do EMI – Ensino Médio Integrado). Mas num tipo de “civilização” na qual a hegemonia é a da produtividade, outras epistemologias são negadas, combatidas e, até mesmo, criminalizadas. A opressão se dá com os saberes dos que vivem de maneira harmônica com o meio natural e valorizando a vida há milhares de anos.

Uma prova disso é que não plantamos mais pra comer, mas pra gerar energia e alimentar carros e máquinas. Ou para alimentar bois e vacas que os gringos ou a elite brasileira vão comer. Um parêntese é que a agricultura familiar, os povos assentados, produzem, de fato, os alimentos que as brasileiras e brasileiros consomem, com maior qualidade, sem depender do latifúndio exportador.

Mas, sobre a fome, as limitações que as questões territoriais produzem e o confinamento de alguns povos, como o Guarani-Kaiowá na região de Dourados-MS, Emmanuel Marinho nos contempla com uma reflexão:

 

GENOCÍNDIO

(de Emmanuel Marinho, poeta de Dourados-MS)

( crianças batem palmas nos portões )

tem pão velho ?

não, criança tem o pão que o diabo amassou tem sangue de índios nas ruas e quando é noite a lua geme aflita por seus filhos mortos.

tem pão velho ?

não, criança temos comida farta em nossas mesas abençoada de toalhas de linho, talheres temos mulheres servis, geladeiras automóveis, fogão mas não temos pão.

tem pão velho ?

não, criança temos asfalto, água encanada super-mercados, edifícios temos pátria, pinga, prisões armas e ofícios mas não temos pão.

tem pão velho ?

não, criança tem sua fome travestida de trapos nas calçadas que tragam seus pezinhos de anjo faminto e frágil pedindo pão velho pela vida temos luzes sem alma pelas avenidas temos índias suicidas mas não temos pão.

tem pão velho ?

não, criança temos mísseis, satélites computadores, radares temos canhões, navios, usinas nucleares mas não temos pão.

tem pão velho ?

não, criança tem o pão que o diabo amassou tem sangue de índios nas ruas e quando é noite a lua geme aflita por seus filhos mortos.

tem pão velho ?

 

Sem ter muito mais o que dizer, após esta síntese que foi feita por meio da arte, há ainda algumas considerações a serem feitas.

A pandemia exibe a estrutura escravocrata na qual fomos formados. Nossas mentes foram formadas nesta estrutura que naturaliza ações validadoras da colonização e que caminha para a intensificação das diferenças de classe e opressoras de outras culturas.

Um exemplo disso é que a vida de algumas famílias, como a minha, se estruturou com pessoas que ganham menos do que outras cuidando dos nossxs filhxs e limpando a nossa casa. Mas há uma maioria populacional que estava do outro lado, ou seja, cuidando dos filhos dos outros e tendo que lidar com a seguinte contradição: quem cuida dxs filhxs delxs e limpa a casa delxs? Este questionamento corta a carne de uns e, se bem pensado, nos dá a dimensão do absurdo de termos coragem em falar sobre meritocracia.

Ao menino que caiu do prédio para que a mãe pudesse levar o cachorro para defecar, nem sobre meritocracia podemos falar, mas, sim, sobre necropolítica. Aos que morreram por balas dentro de suas casas ou foram presos por pequenas quantidades de drogas, a meritocracia não é, nem mesmo, uma possibilidade remota.

Tocando a educação, diante das problemáticas já citadas o contexto nos exige alguns apontamentos.

Enquanto os Institutos Federais se orgulham de serem educação pública de qualidade, muito acima da média das escolas privadas em desempenho, inclusive em seu quadro docente, por outro lado, poucos têm acesso. Se tínhamos que alcançar o atendimento de ao menos 10% das alunas e alunos do Ensino Médio do Brasil, a verdade é que alcançamos só um terço disso. Se teríamos que dar acesso a todas e todos, a verdade é que o processo seletivo inclui as/os melhor     es      e dá algumas migalhas a outras/os via cotas. Esse não é um problema dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, mas de toda a sociedade.

Se a concepção de educação contida nos IFs exige ‘Ensino Profissional’, muitos pensam que se trata de Ensino Profissionalizante. O que dizer sobre a continuidade de uma educação colonial eurocentrada em vez de um rompimento de paradigma rumo à      valorização de outros conhecimentos?

Quando seremos capazes de desmontar a violência epistemológica em curso?

Se ficamos pacíficos em entender a exclusão de outras cosmovisões, ratificamos o neoliberalismo em curso e, nessa situação, estamos dando espaço para o trabalho intermitente e uberização no trabalho docente, com brechas sendo cada vez mais abertas.

Sobre o ensino remoto (que não ousam chamar de EAD, pois precisaria de uma outra estrutura), as questões que hoje são provisórias podem se tornar permanentes. Aliás, o relatório do Banco Mundial (desde o Temer) apontava nesta direção, fortalecido por todos que acordaram com um Estado que salva os ricos e abandona os pobres. Por isso, vemos a mídia empresarial atacando o governo atual, mas não seu programa econômico.

Sobre as questões domésticas e atividades escolares remotas, quem fará isso agora? Homens e mulheres de maneira igual ou caberá às mulheres limpar, cuidar, ser professora e merendeira, tudo ao mesmo tempo?

Sobre as demissões nas instituições de ensino particulares, quem acha que isso não tem nada a ver com xs servidorxs está enganado… É um sinal de que chegará a nós. A demissão das ‘professoras e professores contratadas(os)’ do ensino estadual e municipal já é uma prova disso.

De que adianta o Fundeb não ter entrado na EC 95 se a pressão é de que um docente poderá atender milhares de alunas e alunos via ensino remoto? Quem diz isso é um representante de uma dessas várias fundações que se apropriam de dinheiro público para emplacar seus lucros interferindo no ensino público e querendo inserir, de maneira mais intensa, sua lógica objetificadora da vida e que dá vida ao capital.

Todas as lutas são nossas também, desde a luta dxs entregadorxs, passando pela luta antirracismo e valorizando práticas sociais do bem viver, Sumak Kawsay, Suma Qamaña, Teko Porã e a busca dos Guarani-Kaiowá pelo seu Teko-Ha.

Diante da continuidade dos mecanismos de escravidão, da subjugação de nações e das culturas, reformular nosso conceito de educação e sociedade é urgente, e há muitos ‘bem viveres’ em curso para que possamos observar e envolvermo-nos neles, caminhar com eles. Isso envolve novos currículos escolares e universitários, novas práticas e outras relações que só se desenvolvem na práxis, equilibrando teoria e prática na luta revolucionária – sob o risco de ignorarmos as práticas populares que já ocorrem nos mais diversos movimentos e territórios Brasil afora.


Imagem de destaque: Crianças “plantam” cápsula do tempo no Quilombo Pitanga dos Palmares/Caipora, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador . Foto. Paula Froes/GOVBA http://www.otc-certified-store.com https://zp-pdl.com/online-payday-loans-cash-advances.php zp-pdl.com https://zp-pdl.com/best-payday-loans.php

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