Depois de tantos acontecimentos, o ano de 2020 vai terminando. O findar de um ano é tradicionalmente um importante rito de passagem e de mudança de ciclo. Nos renovamos em nossas esperanças, reabastecemos nossas expectativas, fazemos promessas mirabolantes e temos a oportunidade de fazer um balanço do ponto em que estamos, em relação ao ponto em que gostaríamos de estar.
Como diria Drummond, “no meio do caminho, tinha uma pedra” e este ano ficará registrado na história, como aquele em que fomos assolados por uma pandemia. De fato, não foi a primeira, mas com toda a certeza, foi a mais ricamente registrada e globalmente vivenciada. Uma doença potencialmente letal, provocada por um vírus, obviamente impactou (e ainda impacta) o cotidiano em diversas localidades mundo afora. Nós não estivemos e não estamos imunes a isso.
Também é verdade que a pandemia não foi esperada por nenhum governante. Não foi planejada e nem sequer havia protocolos que nos direcionassem em situações como esta. No mundo todo, este momento representou um desafio sem precedentes. Todos nós, sem distinção, tivemos de nos reinventar. E sejamos honestos, nem todas as “reinvenções” funcionaram.
Ser professor em 2020, foi algo especialmente inquietante. Decretada a pandemia, migramos para o ensino remoto. Com alguma dificuldade, mas dispondo de recursos, a rede privada de educação conseguiu seguir adiante. Não sem problemas, mas seguiu. Por outro lado, na rede pública, os danos parecem atravessar o tempo. Em Minas Gerais, por exemplo, o Governo do Estado promoveu uma série de ações que tinham por objetivo, garantir o acesso dos alunos à educação. O plano de emergência podia até ser bem intencionado, mas é notório que não conseguiu alcançar seu objetivo.
Foi desenvolvido um Plano de Estudo Tutorado (PET), com aulas transmitidas pela TV e pela internet. Na teoria, tais canais alcançariam a totalidade dos alunos ou um número expressivo e bem próximo do total. Na prática, elementos da realidade e da pobreza deixaram claro que não estamos nos referindo a uma diferença entre os modelos público e privado. Estamos tratando de um abismo.
O programa de TV desconsiderou o fato de que boa parte dos alunos não habitam casas espaçosas e confortáveis. Vale lembrar que, o confinamento não esteve restrito aos estudantes da rede pública, mas foi sugerido para toda a sociedade. Nossos alunos passaram então, a conviver muitas horas do dia, com outros familiares em casas apertadas. Por vezes, num mesmo cômodo, estava o estudante tentando assistir a aula, com a avó noutro canto, ouvindo rádio, acompanhando o louvor da igreja, enquanto a irmã mais velha, ouve música alta para arrumar a casa. Uma casa cheia de gente e de incertezas.
Pensando nisso, foi dada a dimensão da mobilidade. O aluno poderia acompanhar as aulas pelo telefone celular e teoricamente, poderia fazê-lo em qualquer outra localidade. Bastava que tivesse acesso à internet. Esqueceram, porém, que no Brasil, segundo um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apenas 61% dos lares estão conectados à rede mundial, e que quando consideramos o recorte econômico, nas classes C e D, o número de pessoas conectadas despenca para 42%. Este aluno precisa possuir um smartphone e um bom plano de internet. Mais que isso, precisa dispor de espaço tranquilo, estar alimentado, com materiais adequados e minimamente motivado.
Depois de tantas condicionantes, há de se concordar que o resultado não poderia mesmo ser alcançado. E pasmem, o Governo parece ter compreendido esta falha. Mas, na tentativa de reorganizar o caos, a emenda saiu pior que o soneto. A Secretaria de Educação elabora uma série de atividades a serem desempenhadas agora pelos professores, (os mesmos que não foram ouvidos nem consultados durante todo o distanciamento social) e que em pleno dezembro, precisam se desdobrar, para localizar os alunos e tentar extrair deles, alguma atividade, algo que comprove que em algum momento, este estudante pelo menos tentou fazer uma única tarefa outrora sugerida. E isso, garantiria ao aluno carga horária e aprovação para o ciclo seguinte. Mas, para quê? Seria essa medida, que poderia recompor efetivamente as perdas ocorridas após período tão longo?
É importante sinalizar que, como professor, por mais absurdo que pareça, não sou contrário à aprovação total e indiscriminada de TODOS os estudantes. Não por mérito, mas por puro reconhecimento. O ano letivo foi interrompido por motivo de força maior. Naquele momento, era importante priorizar e preservar a vida. E isso foi feito. Considerando os estudos avançados e a vacina que já se anuncia. É provável que em 2021, tenhamos a oportunidade de promover outro ano atípico, desta vez, compactando um pouco as aulas para comportar os conteúdos do período anterior e do próximo. Não é o ideal, mas é o que pode ser feito sem que precise criar um ambiente tão desgastante em um momento em que ninguém mais parece ter forças para reunir tantos elementos meramente burocráticos.
Finalmente, se o ponto em que estamos não é o melhor, talvez fosse a oportunidade de estarmos organizados, elaborando medidas efetivamente concretas, que viabilizassem um retorno seguro e verdadeiramente comprometido com a recuperação das eventuais perdas que inevitavelmente ocorreram. Incentivar, ensinar, acreditar e educar, são tarefas genuinamente complexas e que só podem ser desempenhadas por um professor. Alguém que compreende a dinâmica de uma sala de aula, de dentro para fora. Estamos sempre ouvindo que o futuro da nação se dará pela educação. Diante de tantos obstáculos, desconfio que não é por nós que os sinos dobram!
Gustavo Silva Neves
Imagem de destaque: Divulgação / MCTIC