A literatura e as marés – um quarto de légua em quadro

Ivane Perotti

Só posso imaginar o que o autor Luiz Antônio de Assis Brasil, ao escrever o diário do médico Gaspar de Fróis, proporia em sua trilogia Um quarto de légua em quadro (1976), se escrevesse a obra sob a égide de 2020. Nas circunstâncias que só a literatura permite e alcança, conheci o autor durante a minha graduação em Letras. Fantástico contador. Homem de sabedoria ímpar. Ao comentar a obra do escritor com um amigo, também professor, ouvi a seguinte pergunta:

— O que você fez em relação à literatura neste ano?

A pergunta óbvia estava encoberta. Perguntava-me sobre o estímulo e a formação de leitores em 2020. Especialmente, leitores de literatura. Vi o suspiro dar voltas antes de findar-se. Fiz. Sim. Promovi saraus, leitura de poesias, de obras interessantes para o ensino médio (considerando a visão deles e não a minha), propus filmes, rodas de conversa e mais leituras de fruição.

— Acredita que funcionou?

Suspiros são a minha bengala quando preciso camuflar a frustração. Não. Sabia que, se a leitura tivesse chegado a 35% de meus alunos, a vitória seria inabalável. Não chegara. Apesar de todos os movimentos, não chegara. Apesar de todas as mobilizações, projetos, propostas e incentivos diretos. Não chegara. Por um elemento muito simples: a literatura precisa de gentes. Ela aglomera, no início, antes de provocar a solidão mais povoada que um sujeito pode encontrar. A mesma solidão povoada que um já leitor busca para não ficar só, ficando.

O contexto pandêmico abriu a tampa da inconformidade para alguns. Para outros, o mundo circundante é apenas uma circunstância. E para muitos, é uma circunstância a favor do próprio umbigo. Penso nas vozes de grandes pensadores e pensadoras diante do que temos. Mas recaio sobre o olhar das crianças que não sabem como se defender do distanciamento social – sem citar o familiar. A escola pública, para a maioria delas, é um oásis. Então, por que, diante de tanto esforço para que se leia e leia literatura no contexto das aulas remotas, o esforço não atinge a expectativa? A expectativa está errada. Se a leitura não faz parte da mesa de refeições, não caminha para fora dela. E quando as refeições faltam, a mesa vira poste.

— Ô, tem exagero aí. Alunos que gostam de ler obras literárias são a exceção. Com ou sem aulas remotas.

Deve ser. Uma vez que nós, professores, convivemos com dificuldades de gerenciar a experiência da leitura. E ainda repetimos por aí, para quem desejar ouvir que, “ler é um hábito”. Não. Não é hábito, pois o princípio desse é a automação. E somos testemunhas de que automação é cegueira: mesmo diante de um vírus letal. Ler é outra “coisa”. É um exercício em vermelho. Ler é um acontecimento. Ler é um processo. Ler é um encontrar a si e ao outro, outros, em cenários e tempos que só a leitura permite. Ler nunca foi “hábito”, pois à revelia da literatura e suas marés de alcance, a escrita toma corpo no peito, depois na curiosidade, depois nas emoções, e quando sinaliza, já faz parte do intelecto, aconteceu. Por mais que Aristóteles (384-322 a.C.) se adiantasse quanto ao dito parafraseado: “Nada pode estar no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos” – em Aristóteles e o papel da razão -, o teiú de então é o teiú de agora. Mais facilmente observado por lentes objetivas, oculares, ligadas a tubos por um sistema de prismas: binóculo. O grande pensador não alcançou as evoluções do vidro. Mas nós competimos com ele, o vidro, em todas as suas dimensões.

— Tá! Entendi as dificuldades. Mas a questão não é nova.

Não. Não é. Algumas narrativas de esforços coroados também não. E o que antes “parecia” ser uma dificuldade, tornou-se investimento: dificultar os acessos à literatura é objetivo des/carado. Aliás, o quanto está diante de nossas fuças o empenho do desgoverno em afastar os livros literários dos lugares aos quais eles sequer chegaram é aviltante. É um crime contra a saúde do amadurecimento e das aprendizagens que a literatura oferece. Obviamente, a literatura põe medo aos que desejam a tirania. Na equação das opressões, quanto menos pensar o povo, mais “bucha de canhão”, mão de obra barata, controle de massa, etc., etc.

— Você está realmente exagerando! A literatura…

Tem função social. Sim. Além de presentear a cognição, estimular o conhecimento linguístico, promover a fruição, o deleite, a leitura literária povoa o inalcançável.

— Parece poético. Mas na prática…

A prática é a leitura da literatura. Acervos morrem nas mãos que não mediam. Livros nas prateleiras são calços de portas. Tijolos sem barro. As letras não se abrem sem um leitor. Você não pode cair na armadilha de que os estudantes negam a leitura. Seria possível levantar esse argumento se a literatura fosse apresentada para todos. Com justiça, não justeza.

— Justeza? Eu sempre incentivo à leitura e…

Voltei à década de 80, quando pude ouvir o sábio verbo de Assis Brasil. Quem não saísse encantado pela fala, encantava-se pela obra. Difícil não deixar bater no peito o discurso de um cronista apaixonado. Tanto na história quanto na ficção, os Assis, os Lessa, os Sabino, os Montello, os Ubaldo, os Guimarães e outros ficcionistas de punho caprichoso, leram a realidade para apresentá-la em “quartos” de légua em quadro. Esses “quartos” explicam muitas medidas atuais. Daí a justeza: quantas leituras são ajustadas a seus leitores? O mesmo que cobrir as mamas da Vênus de Milo em nome da família açucarada. A literatura não é hipócrita. E isso tem de ser experienciado na escola. Talvez o único espaço para se rasgar o verbo. E cobrar justiça.

Eu e meu amigo professor temos algo em comum: o desejo por aprender numerologia e jogar jujubas para 2021 nascer quadrado. Na literatura pode! Eis então, um convite a ela. Que venham as letras fazer deste um país de protagonistas.

Referências:

COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: ser, saber, fazer. SP: Saraiva,1977.

BRASIL, Luiz A. Assis Brasil. Um quarto de légua em quadro. PA: Movimento, 1976.


Imagem de destaque: Tony Tran / Unsplash

 

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