Maria G. Lara
Desde a última semana, minhas redes sociais têm estado cheias de manifestações motivadas pelo doloroso caso da menina do Espírito Santo que precisou de um aborto após sofrer abusos sexuais ao longo de metade de sua vida. As pessoas que me cercam têm sido sempre, no mínimo, empáticas com a criança, mas aparentemente a posição da menina como vítima não é tão óbvia pra parcela da população representada por aqueles que foram até as portas do hospital tentar impedir um procedimento necessário para preservar sua vida.
Em geral tentamos ignorar essa gente. Falar mais alto, com a nossa bolha, com “as instâncias competentes”. Mas nem sempre é possível e comentários como esse ultrapassam as bolhas:
Não é necessário nomear o comentarista. A retórica não é original. De alguma forma, a “inocência” de meninas abusadas nunca deixa de ser posta em xeque. Esse texto não é sobre a Menina de 10 anos. É sobre o olhar do público, que vê uma menina quebrada e a transforma na culpada pela violência sofrida.
É sobre Lolita, o livro de Vladimir Nabokov lançado em 1955, e nossas leituras dele.
Facilmente um dos livros mais polêmicos da literatura, Lolita é narrado por um abusador que tenta convencer a si mesmo – e à audiência – de que sua vítima é a responsável pelo abuso perpetrado por ele. O protagonista é Humbert Humbert, um francês intelectual, letrado, bem apessoado e de meia idade. A menina que dá título ao livro é Dolores Haze, uma menina de cidade pequena que tem doze anos quando Humbert a vê pela primeira vez e a transforma em seu objeto de desejo – sua Lolita. Não parece ser difícil observar que o balanço das relações de poder entre Humbert e Dolores pende muito mais para um lado do que para o outro. Nabokov não se esquiva de nos lembrar quem é o antagonista da história, mesmo que ele fale através da boca do próprio. Mas não foi assim que eu ouvi falar do livro pela primeira vez.
Quando eu tinha a idade com que Dolores nos é apresentada, eu vi a TV anunciar a exibição do filme Lolita, a versão de 1962, de Stanley Kubrick. A menina na tela olhava desafiadora pra câmera por cima de seus óculos de sol, posando como uma modelo da Victoria’s Secret. O que se desenhava ali era um romance erótico, eu não precisava de muito contexto pra entender isso. Mas assisti ao filme, escondida da minha mãe, e aquela conclusão se confirmou.
Com acesso livre à internet, minha segunda providência foi ver o que outras pessoas falavam de Lolita – e o que encontrei foram ecos do que o filme de Kubrick me apresentou. Também descobri que existia um livro, mas a essa altura não me interessava lê-lo. Eu já conhecia a história, não conhecia? Uma ninfeta conquistou um homem adulto e dali pra frente tudo deu errado pros dois.
Foi só uns anos mais tarde que encontrei a capa azul-bebê de Lolita num sebo. Com uma lembrança mais difusa do filme e das opiniões que encontrei online, decidi levá-lo pra casa. Ali eu fui confrontada, pela primeira vez, com o lugar de acusadora em que eu me coloquei ao consumir o filme. Eu, uma menina de doze anos, havia decidido que outra menina de doze anos que teve a vida arruinada por um abusador era algum tipo de femme fatale.
O livro não me ofereceu uma Dolores angelical e amedrontada, pelo contrário. Ela era tão precoce, teimosa e irritante quanto as suas contrapartes apresentadas a mim no cinema e na internet. Mas ela era também uma criança, descobrindo a si mesma como um ser autônomo e sexual, mas uma criança. Não havia justificativas para um homem em seus 40 anos estar em pé de igualdade com ela em esfera alguma.
De repente, o que eu mais via à minha volta eram outras Dolores. Meninas, crianças, adolescentes que nunca seriam a vítima perfeita. Nenhuma de nós era uma criatura angelical, sem defeitos ou curiosidades que pudessem ser usados contra nós se um dia fôssemos transformadas em Lolitas.
No romance de Nabokov nós temos uma quantidade angustiante de detalhes, ainda que filtrados pela mente do agressor. O livro acompanha o processo pelo qual o protagonista arruina a vida de uma menina a ponto dela sequer chegar à vida adulta. Ainda assim, Dolores foi facilmente transformada na responsável pelas tragédias de sua história. Mais próxima de nós, mas ao mesmo tempo menos conhecida por nós, a menina de 10 anos foi transformada em assassina por preservar a própria vida e teve sua inocência questionada simplesmente por ter sido vítima.
Humbert Humbert é a epítome do narrador não-confiável e, mesmo assim, há quem responsabilize mais a Dolores que a ele. Os cineastas, leitores e espectadores que viram em Dolores um sex symbol, uma pessoa madura o bastante para manipular um homem crescido, fortalecem a narrativa que uma criança possa ser culpada por sofrer violências de todo tipo desde a mais tenra idade.
A violência para meninas abusadas não acaba com a denúncia. A violência continua em nós, nos olhares que se voltam pra essas crianças quando elas se tornam casos públicos, olhares com poder para transformá-las em objeto de debate, enquanto Humbert Humberts são mantidos nas sombras, inquestionados.
Esse é menos um convite pra ler Lolita do que um convite para repensar nossas leituras de casos de abuso. Quem deveria ser jogado à arena dos debates públicos nunca foi Dolores Haze, mas Humbert Humbert.
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