Participação popular no controle da doença de Chagas

Raquel Aparecida Ferreira¹

A doença de Chagas é um importante problema de saúde pública em vários países da América Latina, tanto pelo elevado número de afetados quanto pela negligência dos países endêmicos em adotarem medidas de prevenção e controle, tornando-a, hoje, uma das doenças tropicais mais negligenciadas no mundo. Ela é causada pelo Trypanosoma cruzi, que possui como vetores os triatomíneos, insetos popularmente chamados de barbeiros.   

A alta morbimortalidade da doença de Chagas atinge, principalmente, as populações que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica, ao lado de uma crítica restrição de acesso aos serviços de saúde. No Brasil, essa população reside ou residiu em localidades rurais insalubres endêmicas para a doença, possuindo hábitos e condições de vida precárias, estando, assim, expostas a uma maior probabilidade de contato com os barbeiros. Ainda hoje, os moradores de áreas rurais endêmicas, constituem a parcela da população brasileira mais suscetível à infeção chagásica.

A doença de Chagas, ainda, carece de um medicamento que elimine de forma eficiente o T. cruzi, e, o desenvolvimento de uma vacina contra a doença, também, é incipiente. Dessa maneira, as principais ações de prevenção e controle da doença estão voltadas ao controle entomológico, que incluem a vigilância ativa e a chamada vigilância “passiva” da doença. Na primeira, são executadas ações de pesquisa e eliminação do vetor por meio de busca de barbeiros, nos domicílios, pelos agentes de combate a endemias (ACEs). Na segunda, dá-se suporte ao controle vetorial a participação popular focada na detecção, encaminhamento e notificação de insetos suspeitos de serem os vetores aos Postos de Informação de Triatomíneos (PITs). 

Um aspecto que dificulta o encontro de barbeiros pelos ACEs, durante as suas visitas domiciliares, é o hábito noturno desses insetos, que apresentam pouca ou nenhuma atividade diurna. Outro aspecto, que torna o encontro de barbeiros difícil, é o fato de que as áreas endêmicas para a doença de Chagas no Brasil, há alguns anos, estão marcadas por uma drástica redução da infestação de barbeiros nos domicílios. 

Nesse contexto epidemiológico atual, o morador, particularmente de áreas rurais, é compelido a assumir o protagonismo e responsabilidade no processo de vigilância e encontro de focos de triatomíneos em seu domicílio, bem como na detecção de focos residuais desses insetos nos espaços peridomiciliares. A participação popular é, hoje, o coração da vigilância entomológica, sendo o morador, o ator responsável pelos cuidados com o seu domicílio, contribuindo, assim, para a interrupção precoce do processo de colonização de barbeiros nos domicílios e peridomicílios. 

Um estudo recente, ancorado em abordagem qualitativa de dados e conduzido por pesquisadores do grupo de pesquisa Triatomíneos do Instituto René Rachou (IRR) apreendeu a percepção de moradores, em cujas casas foram encontrados barbeiros, de áreas rurais dos municípios mineiros endêmicos para a doença de Chagas: Piracema, Itaúna, Itaguara e Itatiaiuçu – sobre diferentes aspectos relacionados aos barbeiros (Souza et al., 2018). Dentre os resultados desse estudo, destaca-se a riqueza de ideias e imagens relacionadas aos aspectos, hábitos, alimentação, abrigos e morfologia dos barbeiros, além de caracterizações e descrições a respeito de evidências, pistas/rastros (marca de fezes, urinas, exúvias, ovos) deixados pelos barbeiros dentro das casas (Souza et al., 2018). 

Além disso, os moradores demonstraram conhecer a funcionalidade dos PITs e sua localização nos municípios, além de saberem o que fazer quando um barbeiro era encontrado em suas residências. Esse estudo levanta indícios de que, pelo menos, parte dos moradores dos municípios estudados estavam familiarizados com a domiciliação e com as características e comportamento dos barbeiros. Esse é um fato importante, tendo em vista que, a população somente conseguirá exercer a vigilância se estiver sensibilizada quanto à prevenção, os cuidados necessários em seus domicílios, e, obviamente, possuírem informações sobre os barbeiros, e seus hábitos.

No estudo citado acima, possivelmente, a população local encontra-se em processo de empoderamento e participação no controle vetorial da doença de Chagas, assumindo a responsabilização e cuidados com seus domicílios. No entanto, essa parece não ser a realidade de vários municípios mineiros, e brasileiros, que diferentemente dos municípios estudados, não possuem um histórico de implantação do antigo programa de controle da doença de Chagas, que foi conduzido pela Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM) na década de 80. Também, não se deve desconsiderar que, embora hoje, a população tenha um papel central no controle vetorial dos triatomíneos, o Estado deve continuar sendo o maior responsável pela manutenção dos programas e estratégias de prevenção e controle de endemias, assegurando e garantindo a saúde da população.

 

1Raquel Aparecida Ferreira é pesquisadora em saúde pública do Grupo de pesquisa Triatomíneos da Fiocruz Minas.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Omar Cerna / Flickr 

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