O ato de comer não encontra paralelo em nenhum outro componente de nossa vida. Consumimos várias vezes, todos os dias. No âmbito de nossa alimentação podemos fazer escolhas que terão impactos na nossa vida, na vida de nosso planeta e dos animais. Contudo, constatamos que como adultos não fomos alfabetizados ecologicamente e nutricionalmente. Não sabemos dizer onde encontrar as proteínas de origem vegetal; que os vegetais verde-escuros são excelentes fontes de cálcio; que as proteínas são formadas por aminoácidos essenciais e não são sinônimo de carne.
Que ação poderá valer para todos e que tenha o impacto da funda e da pedra? Sugiro uma proposta que uma criança ou um idoso, o letrado ou o analfabeto irão entender. Temos em nossas mãos uma arma po- derosa e que poderá “frear a roda”, ou, frear o sistema produtivo, res- ponsável por 39% da produção de lixo do mundo; pela poluição dos rios e lençóis freáticos; pela erosão dos solos; pela emissão de 18% do CO2, 37% do gás metano e 65% de óxido nitroso, liberados na atmosfera; por 70% do desmatamento da Amazônia; pelo desvio de grãos nobres, que deveriam alimentar pessoas famintas ao redor do mundo, e que ser- vem de alimento para “animais de abate”; e, se não bastasse tudo isso, pela escravidão e morte cruéis de bilhões de animais não humanos por ano. Estamos falando de seres sencientes, sujeitos de uma vida que nossa prepotência transformou em coisa/objeto/produto.
O QUE PODEMOS FAZER
Existem pessoas que comem o dia inteiro e não se nutrem. Nutrir é algo bem mais complexo. Implica em cuidado na escolha daquilo que iremos colocar na sacola do supermercado, tempo envolvido no preparo, até o momento em que o alimento chega ao prato e, por fim, como se faz essa refeição. Fazemos escolhas e muitas delas têm priorizado a praticidade e não a qualidade nutricional.
É possível uma transformação profunda começando, unicamente, com o nosso garfo, quando diminuirmos o consumo de proteínas de origem animal. Essa é uma resposta prática a muitos dos problemas que vivemos hoje e, a meu ver, uma tradução do “viver radicalmente”, proposto por Boff. Um “contrato ético” não poderá ignorar que somos parte de um complexo de sistemas vivos, compartilhando com animais não humanos um mesmo ecossistema global. Os princípios da interdependência, da parceria, da ética, dos processos cíclicos, para citar alguns, tornados possíveis pelas conquistas científicas, tecnológicas e culturais, precisam orientar o nosso modo de viver. O animal humano, não humano e a “Mãe Terra”, precisam ser alvos do mesmo olhar do cuidado.
O convite é para a abertura a um movimento de experimentar, testar e criar receitas e sabores. Resgatar o nosso rico e diversificado patrimônio de frutas, hortaliças, legumes, grãos e tubérculos. Está literalmente em nossas mãos, no garfo e na faca, o poder de impactar o mercado e exigir uma alimentação que seja condizente com a crise climática que estamos vivendo e com o nosso conhecimento ético em relação ao trato com as outras espécies.
O fato de sermos onívoros já indica que podemos escolher aquilo que iremos ingerir. Se encontramos todos os nutrientes de que necessitamos para a nossa saúde nos alimentos de origem vegetal, é sinal de que esta via precisa ser considerada. Não somos determinados a ingerir produtos de origem animal; é opcional. Se o fazemos, é porque “achamos gostoso”, por hábito (desde que nasci!), costume (sempre foi assim!), tradição (minha avó fazia assim!), cultura (comida mineira, baiana etc.) ou social (todo mundo come assim, ou se eu não comer, fica chato!). São inúmeras as razões, contudo nunca podemos dizer que “temos que comer”.
Tudo aquilo que é muito gostoso tem gordura, açúcar e sal. A indústria alimentícia sabe disso e, no limite, não terá escrúpulos em explorar. O desejável e tudo aquilo de que necessitamos para ter saúde estão perto de nós: os grãos, os cereais, as frutas, as oleaginosas, as verduras e os legumes. Aqui há um universo de cores, texturas e sabores que podem se transformar em receitas deliciosas e atraentes. Não há o glamour da propaganda, mas o trabalho artesanal das mãos zelosas e comprometidas dos adultos.
Na música de Beto Guedes “Pela claridade de nossa casa”, ele diz “vem procurar um lugar onde a gente, para se alimentar, bastaria a terra”. Tão distantes estamos dessa poesia! Em nossos pratos, tudo, menos os frutos da terra. Esperamos que seja, por enquanto!
Para saber mais
BOFF, Leonardo. Comensalidade: passagem do animal ao humano. Acesse aqui.
FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Laudato Si’. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus: Loyola, 2015.
FRANCISCO, Papa. Exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia. Acesse aqui.
HARARI, Yuval N. Homo Deus: uma breve história do amanhã. 1. reimpr. [São Paulo]: Companhia das Letras, 2016.
MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS. Animal não humano presente! Reflexões sobre a educação e a relação entre animais humanos e não humanos. Belo Horizonte, 2020. Acesse aqui.
SUSIN, Luiz Carlos; ZAMPIERE, Gilmar. A vida dos outros: Ética e teologia da libertação animal. São Paulo: Paulinas, 2015.
TEIXEIRA, Aleluia Heringer Lisboa. Encíclica Laudato Si’ e a Educação: qual parte nos cabe? Acesse aqui.
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