O museu da Língua Portuguesa

Alexandre Azevedo

Você sabe quantas pessoas no mundo falam o português? Não? Cerca de duzentos e sessenta milhões de pessoas. E claro, o Brasil é o país com o maior número de falantes, sendo que São Paulo é a cidade com mais pessoas falando a mesma língua que falava Camões. E nada mais justo que, na reinauguração do Museu da Língua Portuguesa, após seis anos de reforma, vítima que foi de um incêndio em 2015, recebesse do governo de Portugal, a Ordem de Camões, uma honraria concedida aos que prestam relevantes serviços à nossa língua. E o Museu da Língua Portuguesa é um dos que atualmente mais prestam esses serviços relevantes. Desde que foi criado, em 2006, já passaram por lá mais de quatro milhões de visitantes, tornando-se um dos principais museus, senão o principal, dedicados à língua pátria. Localizado no Bairro da Luz e dentro do tradicional edifício da Estação da Luz, o Museu da Língua Portuguesa tem como objetivo central mostrar aos brasileiros e também a todos aqueles que admiram “a última flor do Lácio, inculta e bela”, como escreveu o poeta Olavo Bilac em seu esplendoroso soneto “Língua Portuguesa”, a diversidade linguística que há dentro de uma só língua. Certa vez comentou o escritor José Saramago, único autor lusófono a receber o prêmio Nobel de Literatura, isso no ano de 1998, em uma visita ao Rio de Janeiro: “Há línguas portuguesas e não uma só língua portuguesa. Essas línguas são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes”. Portanto, essa é a grande “sacada” do Museu da Língua Portuguesa: mostrar que não existe um só português. Uma só língua. Mas há uma diversidade de línguas portuguesas dentro de uma só língua. Foi o que muitos puderam constatar em 2006, ano em que a literatura brasileira comemorou os cinquenta anos da primeira edição de um clássico: “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa. E não existe autor que mais se aventurou nessa questão linguística do que o nosso Rosa. Inventor de mais de cinco mil palavras (os neologismos rosianos estão dicionarizados na obra “O Léxico de Guimarães Rosa”, da autoria da professora Nilce Sant’Anna Martins), o escritor mineiro dizia que não devia obediência ao português tradicional e que ele próprio ia construir o seu português. E construiu. Basta ler o seu romance, as suas novelas e os seus contos, e você verá o quanto o português de Guimarães Rosa é igual e diferente dos outros portugueses, como bem comentou o português José Saramago. Além de Guimarães Rosa, outros importantes autores foram homenageados pelo Museu da Língua Portuguesa, dentre eles, aquele que é considerado o grande nome de nossa literatura: Machado de Assis. Outra homenageada, por sua prosa também inventiva, foi Clarice Lispector. Além do cronista Rubem Braga e da poetisa-doceira Cora Coralina. Até que, em 2015, o Museu da Língua Portuguesa ardeu em chamas. Um curto-circuito provocou o incêndio, destruindo a exposição “O tempo e eu”, sobre um dos maiores historiadores e folcloristas do Brasil, o potiguar Luís da Câmara Cascudo. Infelizmente, um dos bombeiros do Museu acabou falecendo em sua tentativa de conter as chamas. Por ser um museu interativo, não houve grandes perdas quanto ao seu acervo, já que a maioria das “peças” é digitalizada. Entretanto, o prédio foi duramente atingido pelo incêndio, causando grandes prejuízos à sua construção, um patrimônio histórico-arquitetônico de grande relevância para a cultura do país. Inaugurado em 1867, a Estação da Luz é um dos cartões postais da cidade de São Paulo. Por isso, foi preciso urgência em sua reforma. Era como se o incêndio tivesse calado a voz dos mais de duzentos e sessenta milhões de falantes da língua portuguesa espalhados pelo mundo. Desde a sua inauguração em 2006, o Museu da Língua Portuguesa passou a ser uma espécie de templo sagrado de um idioma. Um idioma que fez de Camões um dos maiores poetas do mundo. Um idioma que fez de Machado de Assis um dos maiores prosadores do mundo. Um idioma que recebeu de braços abertos outros idiomas, como os dos indígenas e os dos africanos. Depois, os dos imigrantes, como os italianos, franceses, árabes e japoneses. O interessante sobre essa questão é que nós, falantes do português, falamos ao mesmo tempo o tupi. Quantas palavras indígenas não estão dentro do nosso português? Não só as indígenas, mas também as palavras dos dialetos africanos. Nomes de cidades, animais, frutas, pessoas, parques, rodovias e estádios, como maracujá, Iracema, Morumbi, Ibirapuera, Anhembi, Botucatu, pirarucu, abadá, pipoca, guaraná, soco, cutucar etc. Esse é o português, um idioma que foi se reinventando com o passar do tempo, com palavras que foram esquecidas e depois resgatadas, como podemos constatar nas obras de Eça de Queirós, autor de “O Primo Basílio”; “Os Maias” e “O crime do padre Amaro”; com palavras que foram inventadas e caíram nas graças do povo. Português de todas as formas e jeitos. O português de todas as épocas. Português dos modernistas da geração de 22, que lutaram por uma língua brasileira, que é a língua falada pelo povo, como podemos notar no trecho abaixo de sua impagável rapsódia “Macunaíma”:

O tico-tico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum lado pra outro acompanhado sempre do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra ele. Fazia raiva. O ticotiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era não. Então voava, arranjava um decumê por aí que botava no bico do chupinzão. Chupinzão engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih! mamãe… telo decumê!… telo decumê!…” lá na língua dele. O ticotiquinho ficava azaranzado porque estava padecendo fome e aquele nhenhenhém-nhenhenhém azucrinando ele atrás, diz-que “Telo decumê!… telo decumê!…”.  

Essa é a nossa língua. A língua brasileira. A língua portuguesa. Enquanto o museu estava em franco avanço em suas reformas, o seu acervo digital foi divulgado fora dos seus domínios arquitetônicos, com a exposição “Estação Língua”, visitando várias cidades. Dentre as atrações da exposição estava o “Mapa dos Falares”, mostrando a singularidade (e a pluralidade) de cada região do estado de São Paulo. Reformado e reinaugurado, o Museu da Língua Portuguesa não será o mesmo. Será ainda maior e melhor. Não ficará somente nos falares do português. Mas também em apresentar ao público outras línguas. Num primeiro momento, serão apresentadas cerca de 23 línguas diferentes, das mais de 7 mil línguas existentes no mundo. Com as suas portas abertas, o Museu da Língua Portuguesa tem a sua língua solta novamente. Aliás, essa foi o título da mostra temporária de inauguração: Língua Solta, que, segundo o próprio site do museu é uma exposição “composta por um conjunto de artefatos que ancoram seus significados no uso das palavras, como objeto da arte popular e da arte contemporânea, apresentados de maneira embaralhada, levando o público a pensar nessa divisão e em outros entendimentos possíveis para o mundo”.

 

Para saber mais
ANDRADE, Mario. Macunaíma, São Paulo: editora Princípios, 2020.


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