Igor Mendonça
Um dos assuntos que hoje ocupam os círculos intelectuais é o espantoso estágio de desenvolvimento alcançado pela Inteligência Artificial. A opinião publicada parece ter despertado para o assunto após a pausa, imposta pelas urnas, nos projetos de poder político da extrema direita mundial.
A gênese da discussão atual foi o início do funcionamento público da ferramenta ChatGPT, da empresa OpenAI. O sistema se autodefine como “um modelo de linguagem desenvolvido (…) com base na arquitetura GPT-3.5” cujo objetivo é “conversar com os usuários e responder perguntas, oferecendo informações e insights sobre uma ampla variedade de tópicos.” O “modelo” afirma ter sido “treinado em uma grande variedade de textos e conteúdos” produzidos até setembro de 2021, o que “permite gerar respostas que são coerentes e relevantes para as perguntas” que recebe. O ChatGPT afirma funcionar usando uma técnica chamada “aprendizado de máquina”; especificamente, uma abordagem conhecida como “aprendizado profundo”.
Os sistemas de IA parecem ter despertado em pessoas importantes da tecnologia e dos negócios um prurido de ética. Algumas, incluindo o ser humano mais rico do planeta Terra, chegaram a escrever uma carta aberta, pedindo (provavelmente, a seus concorrentes) uma pausa de seis meses no desenvolvimento de ferramentas mais “poderosas” que o GPT-4 (sistema mais recente da OpenAI, disponível sob assinatura). Os subscritores mostram-se muito preocupados com os riscos que os sistemas que competem com a inteligência humana podem trazer. Para eles, sistemas de IA poderosos deveriam ser desenvolvidos apenas quando estivermos (quem “estivermos”?) confiantes de que seus efeitos serão positivos e seus riscos serão administráveis.
Se alguém na China ou no Vale do Silício deu a mínima para o pedido, não há como saber. Mas podemos ficar em dúvida se o texto é mais ingênuo ou mais hipócrita, já que, entre seus signatários, certamente existem pessoas de ambos os grupos.
A carta mostra que uma parte da elite mundial considerou importante dar uma pausa em achar novas formas de acumular dinheiro para demonstrar seu medo de algo que acontece quase como um processo natural há tempos: a criação de tecnologias que tornam o trabalho humano desnecessário. O desenvolvimento da economia liberal (com ou sem o prefixo “neo”) sempre evoluiu tornando seres humanos descartáveis como trabalhadores. Em algum tempo seremos quase todos reduzidos a consumidores de produtos inúteis ou com obsolescência programada que algum algoritmo insondável nos recomenda. Parece inclusive que daqui a algum tempo o déficit protéico da humanidade poderá ser resolvido por uma empresa que conseguiu produzir carne de mamute sintética. Mas até mesmo como consumidores somos descartáveis em alguma medida, pois — como qualquer estudante de Economia sabe — número de clientes não induz necessariamente lucratividade.
Apesar disso, devemos concordar que esse processo está mesmo no limiar de um novo estágio. Até ontem, os descartáveis eram apenas os menos qualificados. Agora, a água está batendo nas nádegas dos trabalhadores intelectuais do mundo desenvolvido. As atividades de criação de conteúdo, design, desenvolvimento de softwares e até as profissões de advogado, médico e professor tendem a ser profundamente afetadas. Por isso, o contingente de desempregados do Primeiro Mundo (acho que já é possível usar esse termo novamente), composto por ex-empregados de fábricas, tende a ganhar esse qualificado reforço. Aqui na periferia do mundo já temos esse “privilégio”.
Em resumo, para que a economia liberal desenvolva todas as suas potencialidades, a obsolescência do ser humano não é acidental, mas essencial. No limite, é preciso morrer quando convém e deixar as máquinas fazerem o seu trabalho sem restrições. Nesse sentido, uma crônica talvez adequada ao nosso tempo seja a sombria série “O Consultor.”
Logo no primeiro episódio, ocorre um assassinato, por uma criança, do dono de uma empresa que desenvolve jogos para celular. A vítima é o arquétipo de um bem-sucedido millenial: um jovem imigrante que obteve sucesso muito cedo na área de tecnologia. Depois, ficamos sabendo que a morte estava prevista em um contrato que ele havia firmado com um “consultor” mefistofélico, interpretado pelo excelente Chistoph Waltz. O homem sabia que a empresa corria o risco de falir dentro de pouco tempo e, por isso, ofereceu seus serviços, com uma condição: a “consultoria” só poderia ser prestada à empresa do jovem Sang Woo depois de sua morte.
A obra cinematográfica, inspirada no romance homônimo de Bentley Little, dialoga com o mito de Fausto, imortalizado na literatura por Goethe. No mito alemão, Fausto prometeu sua alma em troca de sabedoria e prazer em vida, que são hoje mercadorias de pouco valor comercial. Sang Woo, por outro lado, não queria tão pouco: pretendia a glória eterna. Então, por que não pagar um pouco mais caro?
Para saber mais
O CONSULTOR (“THE CONSULTANT“). Criada por Tony Basgallop. Produzida pela Amazon Prime Video, 2023.
FUTURE OF LIVE INSTITUTE. Pause Giant AI Experiments: An Open Letter. Acesse aqui.
GOETHE, J.W. Fausto zero. Cosac & Naify, 2001.
Imagem de destaque: Galeria de Imagens.