O Dia do Ensino Médio – Bruno Bontempi Jr

O Dia do Ensino Médio

Bruno Bontempi Jr.

No dia 18 de fevereiro celebra-se (?) o “Dia do Ensino Médio no Brasil”, curiosa efeméride que combina a criatividade e o ócio de nossos representantes nas casas legislativas. Não obstante, a data sugere ao historiador da educação que, afinal, seria mais apropriado marcá-la como “Dia do Problema do Ensino Médio no Brasil”, que, de fato, tem completado antiquíssimos aniversários. Com efeito, remonta os tempos do imperador a inquietação sobre o que fazer com o “ensino secundário”, seu ancestral direto. Em livro clássico, Maria de Lourdes Haidar identificou a persistência de “dois padrões” concomitantes e concorrentes do ensino secundário, destinado a prover instrução literária e humanística a uma restrita fatia social em busca de distinção, empregos públicos e cargos na política. O “padrão ideal” constituía o regime didático e organizacional do Colégio Pedro II, criado na Corte para ser um modelo de ensino regular e formativo, a imitar-se nos congêneres provinciais. Esse modelo vinha-se contrapor ao “padrão real”, caracterizado pela oferta, por mestres públicos ou particulares e de modo irregular e parcelado, dos conhecimentos exigidos em exames de entrada para cursos superiores. Malgrado os esforços do governo em criar dispositivos legais para a indução do regime seriado, prevaleceu o caráter preparatório do ensino secundário, que servia aos interesses das famílias de conseguir, o quanto antes e à custa do menor esforço, certificados de proficiência nos conteúdos requisitados de seus jovens filhos no beiral das academias.

Veio a República e, como se deu com a personagem de Machado de Assis em Esaú e Jacó, mudou-se a tabuleta da loja, mas tudo seguiu como antes quanto à natureza e ao modo de funcionamento dos ginásios. De 1890 a 1925, sucessivos decretos-lei promoveram um curioso movimento de vai-e-vem com medidas de equiparação e exames de madureza, ora suavizadas, ora abolidas, que fizeram prevalecer por curto tempo um “padrão” ou outro. Persistia, além disso, a querela do Latim: os estudos secundários deveriam ser predominantemente humanísticos ou científicos? Entregue a esse bailado, o governo federal mostrou-se indisposto a criar estabelecimentos, a abrir vagas e a democratizar o acesso. Era esta a expectativa de Anísio Teixeira, que em batalhas pela educação como direito, não como privilégio, tencionou “modernizar” o ensino secundário por meio de sua expansão, atualização didática e ajuste de conteúdos, querendo fazer dele uma continuidade da escolarização primária. Não havia, porém, consenso quanto ao melhor modo de articular o ensino secundário no organismo escolar brasileiro: para o educador Fernando de Azevedo, agarrado ao credo político da elite ilustrada paulista, agradava a manutenção do caráter seletivo e humanístico do ensino que precederia à “verdadeira universidade”.

O destino dado aos sonhos dos “pioneiros” nas políticas educacionais dos governos Vargas foi a reiteração de um secundário seletivo, destinado à preparação das “elites condutoras” e que fluía, exclusivamente, para o ensino superior. A diferença é que, com a estrita uniformização assentada na legislação autoritária e seu sistema de inspeção, caíram por terra a liberdade de ensino e o sistema parcelado. Em reta paralela e sem saída (para a universidade) seguia o “ensino profissional”, destinado à formação do “trabalhador nacional”, consagrando a dualidade do sistema educacional republicano: ensino secundário, clássico e científico para os aspirantes às melhores posições, salários e ao governo da sociedade; ensino profissional, técnico e precocemente especializado para os artífices diretos da produção da riqueza nacional, em posições e salários, todavia, apenas superiores à massa de trabalhadores sem instrução. Sobreposto ao ensino profissional cometido ao governo federal, o Estado Novo instituiu ainda o Senai, cuja premissa era formar com maior eficácia e menor tempo a mão de obra especializada que atendesse diretamente às necessidades da indústria, definidas, desta feita, pelo próprio empresariado. Chegava ao “ensino técnico” o dilema imperial do ensino secundário: formação ou preparação?

A LDB de 1961, “meia vitória” dos educadores “novamente convocados”, deu passo à frente quanto à rigidez curricular de Capanema, ao flexibilizar os currículos estaduais; também procurou equiparar os cursos técnicos ao ensino secundário, criando o “ensino médio”, nosso aniversariante do mês. A maior expectativa, porém, de encerrar o ciclo dicotômico “educação geral x educação especial” no campo da escola média agarrou-se à lei 5.692, decretada no regime militar. Por ela, a profissionalização tornava-se compulsória para os estudantes da rede pública, gerando, do ponto de vista curricular, a diminuição da carga horária das disciplinas tradicionais para a inclusão de conteúdos técnicos. O resultado, porém, não foi a esperada harmonização, não só devido à indefinição quanto ao significado de “profissionalização” nos próprios documentos legais, mas às dificuldades de implantar um tal currículo na sucateada escola pública, provida por docentes em acelerado processo de proletarização. Enquanto os jovens das famílias mais pobres eram submetidos a um arremedo de preparação profissional, os de classe média fugiam para as escolas particulares, em busca de preparo para os vestibulares. Para as concorridas universidades públicas rumavam os egressos dos cada vez mais robustos “cursinhos”, que ditavam os conteúdos e a didática do ensino médio regular que os precedia. Pelas famosas apostilas, a ditadura nos trazia de volta o “padrão real”.

Enquanto as escolas regulares de ensino médio ostentavam ótimos resultados em listas de aprovados nas faculdades mais procuradas do país, a escola pública de segundo grau já parecia convencer os jovens de que não haveria chance de concorrerem aos diplomas de prestígio e boa remuneração. A educação profissional de nível médio, por sua vez, abandonada pelos sistemas estaduais, ficou praticamente restrita às Escolas Técnicas Federais. A esperança foi adiada para a LDB de 1996, que frustrou os educadores e os setores sociais que pretendiam instituir o trabalho como princípio educativo e orientador do currículo. Ambígua, a própria lei abriu caminho para soluções como o decreto 2.208/97, que separaria novamente os dois modos de ensino, ao definir que os cursos técnicos deveriam ser cursados paralelamente ao médio regular. O retrocesso era tão evidente, que chegou a reacender em certos corações a nostalgia da Lei 5.692; mas essa desarticulação foi em parte revogada pelo decreto 5.154/04, que passou a permitir que as instituições oferecessem em turnos diferentes, sob a mesma matrícula, aulas regulares e cursos voltados para o trabalho. Mais recentemente, orientado pelo novo-desenvolvimentismo, o Governo Federal criou o Pronatec, que por meio de cursos gratuitos em diversas instituições públicas e privadas tencionava “expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica”, ampliando oportunidades de “formação profissional qualificada aos jovens, trabalhadores e beneficiários de programas de transferência de renda”. Ainda é cedo, porém, para apurar seus resultados…

Seja como for, os anos 2000 conheceram um aumento significativo da demanda pelo ensino médio, indicando sua popularização e, como seria de se esperar, expondo de modo dramático as incompletudes da escolarização anterior e a virtual terminalidade do ensino médio, seja para o ensino superior, seja para a cúpula do mercado de trabalho. Recoloca-se em pauta, ao menos no discurso do novel ministro desta “pátria educadora”, a necessidade de dar prioridade ao ensino médio, o que reacende em nossas almas alguns velhos problemas, acrescidos dos tantos outros que advém da inevitável incongruência entre a “escola democrática” e o modelo econômico global excludente. Altas taxas de retenção, evasão, insuficiência de aproveitamento, distorção idade-série, indefinição curricular, salas de aula lotadas, desvalorização da profissão docente… Viceja, sobretudo, entre os jovens que não têm acesso às caras e seletivas escolas particulares, uma sábia desconfiança quanto ao propalado poder redentor da escolarização média, ao reconhecerem cotidianamente que a “alavanca social” que lhes foi prometida não se realiza. Alguns analistas e propositores de políticas vêm repetindo, desde a década de 1990, que a solução dos problemas do ensino médio brasileiro passaria pela promoção da “sintonia” entre a escola e o mundo do trabalho, de modo a torná-la mais adaptada aos novos tempos, aos quais os jovens, supostamente, estariam pretendendo se alinhar. Nada me parece mais bárbaro, porém, do que lutar para transformar a escola na antessala do maravilhoso mundo de hoje, seja para formar trabalhadores competentes para sonhar com vagas que não há, seja para lhes convencer de que, como nos versos de Caetano Veloso, “O certo é saber que o certo é certo”.

 

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